quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O que me move


Não tenho ídolos. Nunca tive alguém que admirasse ou que quisesse ser igual. Sei que isso não é muito comum, e é verdade. Nas minhas fantasias, sempre quis ser eu mesmo, vivendo uma condição de destaque. Grande músico, grande escritor, grande piloto de carros, grande qualquer coisa. Nunca me enxerguei como Steve McQueen ou Graciliano Ramos.

Então, não entendo a idolatria. E não entendo pelo simples fato de enxergar nesses, que tantos colocam nas alturas, somente a condição humana de cada um.

Vou dar um exemplo: tenho inúmeros discos, entre LPs e CDs, de Miles Davis.

Ele foi um tremendo mau caráter. Roubava música dos outros, roubava os colegas de banda, não respeitava a mulher alheia, teve dois filhos que não reconheceu (e eles a ele!)... Só que não vou me desfazer nunca dos seus trabalhos. São, em grande parte, divinos; alguns deles definitivos.

O músico estava acima de qualquer avaliação, o homem não. O primeiro construiu uma carreira irretocável, o segundo era um miserável da pior espécie. Mas um não anula o outro.

É possível perfeitamente que o brilho, a genialidade, convivam com o monstro que cada um carrega em si. Não sou versado em filosofia chinesa, só que desde muito sei que o Yin e o Yang estão dentro da mesma personalidade.

Então, por que o choque de alguns? Por que o Pelé não reconheceu a filha que morreu, assim como fez o ex-vice-presidente José Alencar? Por que o John McAfee é um crânio da informática e viciado em altíssimo grau? Por que o John Kennedy usou Marilyn Monroe e teria sido um dos responsáveis pela depressão que a levou à morte? Por que Diego Rivera não se importou quando Frida Kahlo foi para a cama com Leon Trotski? É isso aí...

O homem é isso aí.

Mas me incomoda quando começam a verberar contra a condição humana. Quando, por causa de uma suposta condição de ídolo, de exemplo, se perca a dimensão do erro, do engano.

O que é a idolatria senão um grande trabalho de imagem? É o mesmo marketing que torna bom algo ruim. E precisamos realmente que nos digam quem e o que consumir?

Ora, por favor! Tenhamos alguma dignidade e, sobretudo, o mínimo de inteligência. Quem espera que o ser humano seja a expressão da perfeição, está no mundo errado. É um ingênuo, para dizer o mínimo; ou burro, para dizer o máximo.

Nem seu pai você idolatra? - podem perguntar a uma hora dessas. Não. Meu pai é um grande cara, um sujeito sensacional, meu maior e melhor amigo (divide essa condição com meu irmão), porém o erro faz parte da natureza dele, assim como da minha. Erramos, e muito, e feio. E daí? O bonito das relações é dar a elas a dimensão exata. Adoro meu pai, meu irmão, minha irmã, minha mãe, meus filhos, minha mulher, só que preciso dar a eles uma condição real, paupável.

O que são as religiões a não ser a expressão ilógica, mas concreta, da idolatria? Então, você não acredita em Deus? - posso dar a entender. Acredito, vejo-o em todas as coisas, sobretudo nos erros. Por que nos erros? Porque sempre aprendo mais com eles.

E em Jesus? Em Buda? Em Moisés? Em Maomé? Todos grandes líderes, ungidos certamente com algo que poucos seres humanos têm ou terão. Respeito-os - muito! Eram certamente dotados de algum tipo de elevação moral, ainda que não fosse congênita, mas adquirida. São mestres, não ídolos. Sou deles um aprendiz, não o tolo que os segue cegamente. Aliás, fé cega, faca amolada.

Quero as pessoas como são, sem revestimentos. Gosto da falha, do equívoco. (É nesses momentos que a humanidade avança.) Quero poder gostar delas, ou detestá-las. Para isso, não posso abrir mão do senso crítico.

É o que me move.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Ao menos alguma grandeza

Vinha me furtando a escrever sobre Oscar Niemeyer porque criou-se um clima de "ame-o ou deixe-o", por mais que o bordão da ditadura possa parecer um sacrilégio se relacionado ao arquiteto. Houve quem o elevasse às alturas pela legado que deixou, assim como têm aqueles que desejam diminuí-lo devido às suas posições políticas. Nem uma coisa nem outra servem para qualificá-lo com alguma precisão.

Niemeyer, para mim, foi um homem coerente com seu tempo. Coerente com a incoerência, quero dizer. Não conheci nenhum intelectual de esquerda, no Brasil ou no exterior, que vivesse franciscanamente, da mesma forma que não soube jamais de alguém da direita, católica ou não, na mesma condição. De Sartre a Gustavo Corção, de John dos Passos a Alceu Amoroso Lima, de Carlos Lacerda a Eric Hobsbawn, jamais houve lugar para remediados financeiramente. A intelectualidade sempre custou caro; a formação de ideias é para poucos ungidos.

Os sistemas se sustentam na intelectualidade. Para cada facínora de esquerda ou de direita, há por trás um ideólogo, um pensador. Hitler tinha Alfred Rosemberg em seu governo; Stalin sustentava boa parte da sua condução política nos escritos de Gramsci; Roberto Campos deu um toque de finesse e de ironia à ditadura militar brasileira, assim como Raul Ryff e Darcy Ribeiro foram eminências na gestão de Jango.

Niemeyer se apaixonou pelo comunismo e por ditadores quando era necessário gostar deles. O mundo era ideológico, coisa que, hoje, parece uma imensa bobagem. Está aí a China, uma feroz ditadura comunista, gozando das satisfações e delícias que somente o capitalismo é capaz de proporcionar. Naquela época, não. Ou era uma coisa, ou outra.

Os cânceres do comunismo ainda não tinham vindo completamente à tona. E naquele socialismo ingênuo, quase estúpido, se acreditava que as massas precisavam de líderes para guiá-las ao paraíso da igualdade.

A geração do arquiteto, é preciso recordar, foi testemunha da exploração selvagem do homem pelo homem. (Concordemos que a selvageria hoje é um pouco menor?) Niemeyer nasceu não muito tempo depois da abolição da escravidão no Brasil. Da mesma maneira, viveu os efeitos da exploração dos "trustes" na economia nacional. (Deve ter queimado bondes da Light, o Polvo Canadense) Presenciou o massacre político da América Latina, da Ásia e da África. (E quedas e assassinatos de Patrice Lumumba, Jacobo Arbenz, Mossadegh...)

Ou as revoluções que vimos nesses continentes (e mesmo algumas da Europa) foram um mero convescote de desocupados? As guerras de libertação, um passatempo inconsequente. Ainda que em muitos casos o que veio depois não fosse muito diferente do que havia antes, não é possível acreditar que levantes se realizaram por pura carnavalização da política.

Não culpo Niemeyer por pregar o comunismo e viver numa casa no centro de um terreno de quase mil metros quadrados, cercada pela mais bela Mata Atlântica. Uma casa simples, é verdade, mas inalcançável ao proletariado de qualquer nação comunista. E como ele, outros.

Affonso Eduardo Reidy ainda tentou misturar as classes no belo conceito do Conjunto do Pedregulho, no Rio. Um condomínio inecreditavelmente humano, com apartamentos de um, dois e três quartos (dúplex!) dentro de um complexo que teria quadra de esportes, posto médico, jardim de infância, escola primária e piscina privativa. A localização? Nada mais working class do que São Cristóvão, perto do Centro, da Zona Portuária e da Zona do Meretrício.

Evidentemente que o sonho não deu certo. Assim como falhou a junção de estratos sociais nas quadras das asas de Brasília, pretendida por Niemeyer e Lúcio Costa. Aquilo que uniria pobres e ricos, trabalhadores braçais, servidores e senadores, ficou no papel. Os contracheques de muitos os expulsou para as então cidades-satélites.

Criticam Niemeyer, sua arquitetura e suas posições políticas de maneira hidrófoba. Já trabalhei em prédios desenhados pelo arquiteto e não gostei, pois falta-lhes a luz natural que tantou prezou em vários projetos. Mas, para mim, são o retrato de uma época, de outro Brasil, certamente mais pobre, incrivelmente desumano e terrivelmente desigual.

Recentemente, satanizaram Monteiro Lobato por causa de correspondências abertamente racistas e da descrição que faz de Tia Nastácia. Ora, para um homem nascido na segunda metade do século 18, o que se haveria de esperar? Quantos não foram criados ouvindo a catilinária de que preto não era gente e não merecia respeito? E que o judeu é avarento e usurário? E que o indígena é preguiçoso? E que o cigano é ladrão? E que o homossexual é sem-vergonha?

Pelo conceito de alguns que tenho lido, devemos nos envergonhar de Monteiro e de Niemeyer pelas ideias que manifestaram. A intransigência com eles, isto sim, é a burrice siderúrgica, a selvageria do politicamente correto, a estupidez da análise rasa, a incapacidade da falta de conteúdo. Reagem às ideias do arquiteto com uma vergonhosa virulência, como se as teses que professassem fossem as únicas e as mais aceitáveis.

Se ao crítico falta grandeza, envergadura, não pode faltar visão de mundo. Passa a ser mesquinharia.