quinta-feira, 3 de maio de 2012

Nada mais que a obrigação

Cláudio talvez tenha tomado uma das poucas atitudes dignas da vida
O ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra disse aquilo que há muito se sabia, mas que os militares insistem em afirmar que não foi bem assim. Durante a ditadura, casernas e delegacias mantiveram estreito contato, em nome da proteção do Estado contra uma ameaça comunista na qual nem eles mesmos acreditavam.

O dito "comunismo" servia de pretexto para a formação de uma rede de criminalidade e de exploração política que era preciso que fosse mantida. Nos altos gabinetes sabia-se perfeitamente que aquela roda fazia fortuna. E que não podia ser parada.

Os oficiais generais bradavam o perigo esquerdista enquanto, na parte de baixo, formava-se a corrente de políticos com acesso às benesses dos governos, protegidos pelos aparatos policiais legais e ilegais.

Mas para essa máquina funcionar, e o dinheiro continuar jorrando para toda a cadeia alimentar, era preciso matar. Do bandido ao militante, era preciso faxinar. A diferença é que o marginal, geralmente de família pobre, não tinha quem reclamasse seu corpo. De antemão, sabia-se que seu fim era morte ou cadeia.

O militante, não. Por trás contava com uma série de contatos que era sua única proteção. Se caísse e não voltasse, a mensagem fora passada. Estava morto. Restava à família solicitar os despojos ao governo.

Matava-se por diversão, por esporte, por perversidade. Tal liberdade era dada pelos governos, em seus três níveis. Como o ex-delegado deixa evidente, não havia código de ética, qualquer conduta valia.

Matava-se para possuir a mulher do próximo, por que não por mero e macabro deleite? O preso está ali mesmo, subjugado. Naquele momento, as trevas para os assassinos pareciam eternas, a ponto de lhes encobrir os atos hediondos

Lembro de dois episódios particularmente interessantes: um público, outro privado.

O público: o desaparecimento de Luiz Jatobá Filho com seu colega, Misaque José Marques. Sumiram na Região Oceânica de Niterói. Não tinham nada a ver com militância política, mas com criminalidade pura e simples. Luiz Jatobá pai, locutor dos primórdios da TV, foi várias vezes para a frente da câmera fazer pedidos patéticos sobre informação de seu filho. Sabia, como jornalista, que não o encontraria vivo. Queria somente o corpo para dar ao filho (e, por extensão, o mesmo direito à família de Misaque) um fim de alguma dignidade.

Os dois jamais voltaram. Por trás estava, segundo se comentou na época, uma partida de drogas tomada junto a um grande banqueiro de bicho do Rio e que não foi paga. Quem o assassinou? Policiais civis e militares que eram sócios do bicheiro não somente nas bancas de jogo, mas na distribuição de cocaína e maconha nos morros niteroienses. Um se tornou sócio-braço-direito de outro "capo" do bicho, dono de vários pontos em Niterói e ex-capitão do Exército - igualmente apontado como um dos mais prolíficos torturadores dos quarteis cariocas.

Não sobraram restos mortais porque, reza a lenda, os cadáveres foram dissolvidos numa banheira de ácido muriático.

Outro episódio aconteceu com meu pai. O apartamento vizinho ao dele, onde mora até hoje, passou anos fechado. Um sábado, mudou-se para lá um coronel-PM que deu um "open house" para inaugurar o novo lar. Como forma de socializar-se, chamou meu pai para uma dose de uísque, ingenuamente aceita.

Menos de 10 minutos depois, meu pai estava de volta em casa:

"Mas já?", disse minha mãe.

Meu velho estava incomodado. Voltara com o semblante pesado, franzido. A festa estava cheia de militares, tanto da PM, quanto das Forças Armadas.

"O fulano (o tal coronel, cujo nome sinceramente não lembro e que felizmente morou ali por somente algumas semanas) estava dizendo que na noite anterior tinha 'queimado' (literalmente? Ou é a gíria da bandidagem, que significa matar?) uns garotos..."

O uísque desceu com o peso de um paralelepípedo.

Não dá, portanto, para dizer que os militares não instalaram um regime de terror do País, tampouco acreditar que eles souberam de tudo depois, na redemocratização. É uma mentira grosseira, torpe. Sabiam de tudo e incentivavam o "guarda da esquina" (como vaticinou Pedro Aleixo) a fazer o que quisesse. A autoridade virou uma carteirinha falsificada.

O mesmo homem que torturava, servia-se da prostituição, do tráfico de drogas e de armas, da venda de facilidades no Detran,  do sistema de despachantes nos tribunais e cartórios. Começava pagando dízimo a alguém (um general, um juiz, um desembargador, o governador, o prefeito...) até que criasse suas próprias conexões.  Formava-se a trama dentro da trama. Todo prejuízo corria por conta do cidadão-contribuinte-eleitor.

O livro do ex-delegado do DOPS é um monumento ao surgimento paulatino da verdade. Quero lê-lo o quanto antes. Provavelmente não cita nomes para cima. Assume e purga suas culpas, localiza personagens mortos ou de menor importância. Tem, porém, o condão de revelar o envolvimento maciço do governo com os assassinatos em nome da segurança nacional.

O ex-delegado cumpriu o papel sempre desprezível de mostrar a nojeira na qual chafurdou. Não é o caso de considerá-lo um heroi, de perdoá-lo. Jamais será. Não se deve também vê-lo com mais ou menos dignidade.

Não fez mais que a obrigação.

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