sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Contorcionismo etimológico e desonestidade intelectual

Pela minha idade e pelo estrato social de que venho, convivi de perto com o racismo. Não que eu seja negro, japonês, árabe ou qualquer outra coisa, mas porque os adultos da minha época tinham profundo desprezo pelo negro. Hoje podem não assumir isso, por causa da igualmente abominável "correção política". Mas cresci ouvindo expressões que, por mais que tentasse, jamais consegui usar.
"Crioulada" era sinônimo de bobagem, de malfeito, de irresponsabilidade. "Crioulice" era uma crítica ao suposto gosto duvidoso que os negros tinham ou têm. De ambas há uma versão mais explícita e despudorada: "coisa de crioulo".
Tem ainda o velho mote da piada do cachorro que entrou na igreja e, ao sair, fez cocô. "Negro quando não caga na entrada, caga na saída". Era para ser engraçado. Isso porque o negro, desde sempre no Brasil, é o subalterno, o iletrado, o obtuso, o descartável. É o escravo que jamais deixou de ser, desde 13 de maio de 1888.
Chamar alguém de "neguinho" passou a ser aceito como gíria, mas poucos sabem as origens. "Neguinho" vinha sempre acompanhado de uma situação negativa: "neguinho" morreu de medo; "neguinho" se deu mal; "neguinho" entrou pelo cano. Quando surgia o "neguinho se deu bem" foi porque conseguiu tirar vantagem, porque mostrou oportunismo.
O que é "neguinho"? Vulgo de marginal, de bandido. Sempre no plural. Ou seja, "neguinho" é relativo a mais de um. Mais de um bandido ou marginal pode ser qualificado como quadrilha. Ou bando.
Quando grafavam o R, o significado negativo ficava claro. "Essa negRinha", "negRinho safado", "negRinha burra", "negRinho ladrão". Isso era falado entre os dentes, rilhando o R. 
Tive um colega com quem trocava LPs. Pelé era seu apelido. Nem preciso dizer a cor de sua pele ou seus cabelos de que maneira eram. Fato é que foi ele quem me apresentou algumas pérolas, como "Kick ou the jams", do MC5; "Tomorrow you belongs to me", da Alex Harvey Band; "Loud'n'proud", do Nazareth; "Live 'n kickin'", do West, Bruce & Laing. Fina flor do rock pesado. Aliás, a molecada branca do São Vicente de Paulo vivia se informando em matéria de rock com o atendente da cantina.
Nem por isso Pelé era o "negro de alma branca". Quando Paulo Cesar Caju começou a sair com as louronas, foi criticado. As raças não se misturam, diziam os mais estúpidos. Não era o "negro de alma branca"; era o negro de alma negra. Pelé, o craque, também não podia ser visto com mulheres que não fossem negras. E Pelé, sim, era considerado o "negro de alma branca": bom moço, sorridente, simpático, falante, preoucpado com as criancinhas do Brasil, gostado pelos generais, elogiado pela Igreja, garoto-propaganda da Vitasay. Disse até que o brasileiro não sabe votar. Quer ser mais "negro de alma branca" do que isso?
Mas o que é o "negro de alma branca"?
O negro que age como branco, que circula no grupo de brancos, na elite. Nem por isso é aceito. É recebido, mas não é considerado. É atendido, mas não é introduzido.
Ninguém na elite branca casa filha com o "negro de alma branca". Continua sendo o que sempre foi: negro. O verniz social que eventualmente adquiriu não o credencia a ser "branco".
Resumo da ópera: "negro de alma branca" é o "Pai Tomaz", o "negro da casa"; o negro escravo mental e cativo, o negro que não se importa de ser malhado, maltratado e humilhado; o negro que é besta de carga e, na cabeça do senhor ou do feitor, gosta de tal condição.
"Negro de alma branca" é pejorativo aqui, nos Estados Unidos, na Jamaica, no Haiti, no Caribe, na África. Paulo Henrique Amorim jamais quis elogiar Heraldo Pereira ao chamá-lo assim. Foi processado e condenado por isso.
Quem diz que a expressão "negro de alma branca" não é pejorativa comete profunda desonestidade intelectual, faz ginástica filosófica, contorcionismo etimológico.
Mais nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário