quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Os desprezos de Dilma

A presidente não esconde alguns desprezos. Um é pela classe política masculina, outro são os militares. Acreditando que realmente Dilma é uma tecnocrata e defensora da meritocracia, talvez formasse um ministério somente de técnicos, preferencialmente mulheres, se pudesse. No caso das Forças Armadas, no conceito de quem passou o diabo numa cela da ditadura, o melhor seria extingui-las.
Isso explica algumas dificuldades de relacionamento da presidente. Ela enxerga nos políticos homens toda a sordidez de uma sociedade machista e conservadora, que fez o País caminhar nas piores direções. Foram eles que, numa observação psicológica enviezada (mas explicada pelas circunstâncias), empurraram o Brasil para a ditadura. Associaram-se ao reacionarismo militar em nome da manutenção de privilégios, de grupos de influência.
Nem mesmo os ex-companheiros de luta armada são vistos por Dilma sem desdém. Pior ainda ela enxerga aqueles que se bandearam para partidos de centro-direita, tal como o PSDB é considerado.
No caso dos petistas, alguns representam, para a presidente, oportunismo próprio de quem foi caroneado ao poder. Não têm convicções: da mesma forma que antigos tucanos, democratas e peemedebistas, vários dos seus colegas de partido pegaram o bonde da oposição apostando numa vitória que custou, mas veio. Enquanto Lula não abriu a porteira para que assaltassem o governo e seus braços, escoraram-se em sindicatos cuja bandeira primeira era fazer oposição e, numa etapa seguinte, promover mudanças para as categorias às quais representam.
Esses ela ainda tolera. Trata-se de benevolência, conforma a própria Dilma faz questão de deixar cada vez mais evidente.
Os militares, porém, são um trago difícil de engolir.
A presidente é muito transparente nas suas impressões. Ao decidir entre a honenagem aos militares mortos no incêndio na estação brasileira na Antártida e a entrega de casas na periferia de Recife, erguidas com recursos do PAC, Dilma nem pensou duas vezes. Ninguém espere cena semelhante àquela do filme A Dama de Ferro, na qual Margaret Thatcher/Maryl Streep assina cartas de condolências aos militares mortos por um ataque argentino, no começo da guerra das Malvinas. Com os homens fardados, o tratamento será no limite do protolocar, beirando o desrespeitoso.
Dilma também foi apagar um incêndio eleitoral em Pernambuco, onde PT e PSB se digladiam pela Prefeitura de Recife. Tanto que João da Costa (PT), prefeito da capital e que busca apoio para a reeleição, e o governador Eduardo Campos (PSB) estiveram juntos na entrega das casas populares. A presidente tem repetido que não vai interferir nas disputas de outubro, mas isso será impossível.
Outros assuntos na agenda estarão sempre acima de qualquer compromisso com os militares. Para o Rio, para a homenagem, despachou o vice Michel Temer e o ministro da Defesa, Celso Amorim, que não se sabe se por mau gosto ou falta de senso compareceu com um fato claro, pouco adequado a uma cerimônia fúnebre. Para uma classe que já anda irritada com a presidente, esse tratamento apenas piora as coisas.
Dilma não se importa em travar queda de braço com os militares. Até gosta desse confronto. É uma forma de devolver o sofrimento de décadas atrás. Por isso deixou que as ministras Eleonora Menigucci e Maria do Rosário os fustigassem, a primeira no discurso de posse, a outra numa entrevista. Quando os clubes militares se manifestaram, enquadrou-os mandando que retirassem a nota de protesto dos respectivos sites. 
A reserva voltou a se pronunciar em nova nota, curiosamente parafraseando no título uma expressão de La Pasionária, militante comunista e uma das líderes da luta contra o franquismo. Os clubes são associações civis, embora seus membros estejam subordinados à ativa.
Dessa vez, os signatários são 98 oficiais que decidiram confrontar a presidente mostrando quem têm nome, sobrenome e patente. A carta dificilmente será retirada do ar e, se for, virá uma terceira, uma quarta, uma quinta e quantas respostas forem necessárias se aos militares for cassada a expressão. 
Dilma não os considera insubordinados, tamanho é o desprezo que devota a eles. Acha-os impertinentes, provocativos, e vai buscar uma maneira de fazê-los de pagar pela afronta. Usará o poder de ser a comandante das Forças Armadas para emasculá-los.
A diferença é que, agora, será com sutileza, politicamente, para evitar que o clima de confronto contamine a ativa e a temperatura suba desnecessariamente. E a decisão não passará por Amorim, que tem se mostrado péssimo conselheiro na condução da questão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Então isso é jornalismo?

"Nada do que a senhora disse vai mudar minha opinião. Tenho opinião formada". Foi isso (ou algo semelhante) quer o repórter Beto Júnior, da novela Fina Estampa, disse à Ester Volkoff ao final da exclusiva que obteve dela, no rumoroso caso sobre quem tem direito a alegar a maternidade da pequena Vitória.
Não, não estou debochando quando uso o adjetivo "rumoroso" para uma situação de novela. Tampouco estou tratando o episódio como brincadeira.
Conhecendo a Globo como conheço, uma falsa polêmica vai surgir nos programas da emissora: que direito tem a mãe que doa óvulos e fica sabendo do nascimento da criança gerada do seu embrião, num ventre que não é o seu? 
Ressalve-se, porém: a questão é atiçada por um jornalista que "já tem opinião formada".
Desde que comecei a trabalhar em redações que ouço o quanto Agnaldo Silva, autor da novela, foi bom repórter. Ainda que não sejamos da mesma geração, ele descende diretamente da época do lide, sub-lide, corpo e pé, como as matérias são estruturadas desde que Prudente de Moraes Neto introduziu a regra americana no "Diário Carioca", então de Horácio de Carvalho, nos anbos 50. Ouvi inúmeras vezes de Helio Fernandes, jornalista anterior a essa época, que Prudente, então chefe de Redação e seu colega, trouxe a novidade depois de temporada nos Estados Unidos.
No momento em que o lide é introduzido na formulação das reportagens, sua adoção é estribada noutra regra de ouro: o repórter deve registrar TODAS as versões do fato. Assim, o jornalista se distanciou.
É a ideia: a de que seja um narrador privilegiado, mas isento, dos fatos. Mais nada. A interpretação cabe ao leitor. Num diário, há setores específicos abertos à compreensão particular dos episódios: o editorial, o artigo, a coluna, o comentário do leitor. Todos refletem visões pessoais, das quais se discorda ou se concorda à vontade.
Ao repórter, porém, tal privilégio não é possível.
Estarrece que Agnaldo e seus colaboradores na novela apresentem um personagem com "opinião formada" e pronto para expressá-la nas páginas do veículo no qual trabalha. Nem o mais especial dos repórteres faz isso. Quem escamoteia o entendimento jamais fica conhecido pela correção profissional.
Sim, repórter pode ter opiniões, teses, teorias. Não é proibido tê-las, desde que confirmadas pelos fatos. Especular é do jogo, é legítimo. Mas se as fontes não confirmam, não é reportagem: é crônica, é artigo.
A novela transmite a perigosa imagem de que a imprensa é desleal e que jornalismo é, por definição, escandaloso. E fantasioso. O ex-presidente Lula não se cansava de atacar os veículos quando denunciavam os absurdos e malfeitos do governo. Primeiro, argumentava falaciosamente que os jornais representavam uma elite econômica que queria tirá-lo do poder. Depois, surrava o jargão de que somente desgraça é notícia. Sinistramente e por dedicados asseclas, tentou emplacar um mecanismo de controle da opinião, instrumento absolutamente claro de censura e amordaçamento.
Mau jornalismo não é jornalismo. Há achacadores, vendedores de espaço, aríetes movidos a soldo para atacar ou proteger. Mas basta ver a posição que desfrutam no universo da imprensa. São insignificantes, têm importância desprezível. Ninguém os leva a sério.
Minha defesa é do Jornalismo com J maiúsculo; da informação, do esclarecimento, da utilidade pública. O restante é secos e molhados, como sugeriu Millôr Fernandes.
Choca que Agnaldo insinue ressentimento com a imprensa com um personagem tolo. O mecanismo insidioso: se um ex-repórter faz um ataque tão contundente, no folhetim de uma casa dona de poderosos veículos de jornalismo, algo há de estranho. Quem assiste à novela conectará o trabalho jornalístico à invasão, ao desprezo pelos ângulos da história. Afinal, todo repórter vai para a cobertura com uma "opinião formada", disposto a apresentá-la como fato.
Jamais, em tempo algum, propus aqui censura ou limites ao trabalho de Agnaldo. Mas me aborrece ver a imagem passada pela novela - que tanto diverte quanto educa e informa; não fosse assim, jamais seria um eficiente veículo de merchandising - daquilo que supostamente seria jornalismo: uma atividade vil, exercida por arrivistas que desprezam a verdade e não se comportam como observadores isentos dos fatos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Contorcionismo etimológico e desonestidade intelectual

Pela minha idade e pelo estrato social de que venho, convivi de perto com o racismo. Não que eu seja negro, japonês, árabe ou qualquer outra coisa, mas porque os adultos da minha época tinham profundo desprezo pelo negro. Hoje podem não assumir isso, por causa da igualmente abominável "correção política". Mas cresci ouvindo expressões que, por mais que tentasse, jamais consegui usar.
"Crioulada" era sinônimo de bobagem, de malfeito, de irresponsabilidade. "Crioulice" era uma crítica ao suposto gosto duvidoso que os negros tinham ou têm. De ambas há uma versão mais explícita e despudorada: "coisa de crioulo".
Tem ainda o velho mote da piada do cachorro que entrou na igreja e, ao sair, fez cocô. "Negro quando não caga na entrada, caga na saída". Era para ser engraçado. Isso porque o negro, desde sempre no Brasil, é o subalterno, o iletrado, o obtuso, o descartável. É o escravo que jamais deixou de ser, desde 13 de maio de 1888.
Chamar alguém de "neguinho" passou a ser aceito como gíria, mas poucos sabem as origens. "Neguinho" vinha sempre acompanhado de uma situação negativa: "neguinho" morreu de medo; "neguinho" se deu mal; "neguinho" entrou pelo cano. Quando surgia o "neguinho se deu bem" foi porque conseguiu tirar vantagem, porque mostrou oportunismo.
O que é "neguinho"? Vulgo de marginal, de bandido. Sempre no plural. Ou seja, "neguinho" é relativo a mais de um. Mais de um bandido ou marginal pode ser qualificado como quadrilha. Ou bando.
Quando grafavam o R, o significado negativo ficava claro. "Essa negRinha", "negRinho safado", "negRinha burra", "negRinho ladrão". Isso era falado entre os dentes, rilhando o R. 
Tive um colega com quem trocava LPs. Pelé era seu apelido. Nem preciso dizer a cor de sua pele ou seus cabelos de que maneira eram. Fato é que foi ele quem me apresentou algumas pérolas, como "Kick ou the jams", do MC5; "Tomorrow you belongs to me", da Alex Harvey Band; "Loud'n'proud", do Nazareth; "Live 'n kickin'", do West, Bruce & Laing. Fina flor do rock pesado. Aliás, a molecada branca do São Vicente de Paulo vivia se informando em matéria de rock com o atendente da cantina.
Nem por isso Pelé era o "negro de alma branca". Quando Paulo Cesar Caju começou a sair com as louronas, foi criticado. As raças não se misturam, diziam os mais estúpidos. Não era o "negro de alma branca"; era o negro de alma negra. Pelé, o craque, também não podia ser visto com mulheres que não fossem negras. E Pelé, sim, era considerado o "negro de alma branca": bom moço, sorridente, simpático, falante, preoucpado com as criancinhas do Brasil, gostado pelos generais, elogiado pela Igreja, garoto-propaganda da Vitasay. Disse até que o brasileiro não sabe votar. Quer ser mais "negro de alma branca" do que isso?
Mas o que é o "negro de alma branca"?
O negro que age como branco, que circula no grupo de brancos, na elite. Nem por isso é aceito. É recebido, mas não é considerado. É atendido, mas não é introduzido.
Ninguém na elite branca casa filha com o "negro de alma branca". Continua sendo o que sempre foi: negro. O verniz social que eventualmente adquiriu não o credencia a ser "branco".
Resumo da ópera: "negro de alma branca" é o "Pai Tomaz", o "negro da casa"; o negro escravo mental e cativo, o negro que não se importa de ser malhado, maltratado e humilhado; o negro que é besta de carga e, na cabeça do senhor ou do feitor, gosta de tal condição.
"Negro de alma branca" é pejorativo aqui, nos Estados Unidos, na Jamaica, no Haiti, no Caribe, na África. Paulo Henrique Amorim jamais quis elogiar Heraldo Pereira ao chamá-lo assim. Foi processado e condenado por isso.
Quem diz que a expressão "negro de alma branca" não é pejorativa comete profunda desonestidade intelectual, faz ginástica filosófica, contorcionismo etimológico.
Mais nada.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Coincidências demais

Aconteceu comigo há muitos anos.
Todo final de tarde, eu e mais um grupo de amigos íamos para a Praia de Icaraí jogar bola. Eu mesmo, que nunca fui grande coisa, tornei-me um bom ponta direita e um bom goleiro devido à insistência. Claro que isso me custou um ano de colégio: a reprovação veio implacável justamente para mim que, de todos, era o pior aluno; o que tinha mais dificuldades de aprender as aulas do sisudo Instituto Abel, de Niterói.
Entre nós existia um rapaz, Marcos Damião. Não sei que fim levou porque, depois do episódio que vou narrar, trocamos uns tapas e rompemos ali uma amizade sempre marcada pela rivalidade.
(Talvez não fosse amizade. Mas o fato é que ele sempre foi recebido na minha casa e eu na dele, apesar dos ressentimentos que a mãe de Damião fazia questão de externar. Não sei se eram comigo. Talvez fossem com o mundo. O pai, Seu Enio, coronel aposentado da PM, era uma doce figura pelo que me lembro.)
Naquele dia, na praia, estava tudo escrito que terminaria.
Eu e Damião tínhamos um colega em comum, Felipe, que além de bom jogador era um tremendo gozador. O ruivinho batia um bolão e todos o queriam no time. Naquele dia ele estava no meu. Não lembro se por opção ou por vontade própria, fui para o gol.
A bola rolou. Damião não era mau jogador, mas não era o craque que pensava ser. Era voluntarioso, tinha disposição, mas sua técnica não era das mais apuradas. Ainda assim fazia o gênero "chato" na areia: aquele que só é marcável quando se joga duro, muito duro. Quase na covardia.
Damião estava inspirado naquela tarde, comendo a bola - como diz a gíria. A certa altura, alguém rola perfeita para ele. Ele ajeita com o lado de dentro do pé direito e escolhe o ângulo. Ia lá certinha não fosse por um detalhe: eu.
Naquele dia eu também estava inspirado.
Voei na bola e consegui espalmá-la. Uma "ponte" dessas de Canal 100. A molecada, claro, veio me abraçar. O gol de Damião era certo, eu impedira. Felipe era um dos mais eufóricos.
Percebi, porém, que o rosto de Damião se fechara. Não gostou da minha defesa. Lembro agora que ele tinha pouco espírito esportivo.
A bola continuou rolando. Numa outra jogada, a bola vem da linha de fundo, cruzada rasteira na área. Me antecipo errado e passa por baixo de mim. Atrás, esperando limpinha, quem? Damião! O gol escancarado. Deve ter falado dentro de si mesmo:
"Agora eu me consagro!"
Eis que... Eis que algo aconteceu. Na praia, o piso é irregular. A bola pode ter dado uma quicadinha de nada, suficiente para mudar a posição da batida. Damião, que em vez de encher o pé quis arrematá-la de lado, foi vítima da empáfia, do desejo bobo de vingança numa brincadeira de adolescentes.
Quando bateu na bola, ela subiu. Subiu e explodiu no travessão! E nem deu a ele a chance de pegar o rebote. Atônito com o erro, incrédulo com tamanho capricho, ficou parado vendo a criança voltar para o centro da área, até que fosse rifada por alguém.
Começou a encarnação. Felipe estava às gargalhadas. Eu também não pude me conter - e aproveitei para tripudiar, já que era a segunda que perdia para mim, no mesmo jogo, em questão de minutos. O restante do pessoal, com maior ou menor peso, fez de Damião o esparro da tarde. 
Não se viu mais Damião "em campo" naquele dia.
Comecinho da noite, fomos todos para uma vila em frente ao prédio de Damião, na Otávio Carneiro. Ali batíamos papo, quando recomeçou a encarnação. De todos ouviu poucas e boas, mas comigo resolveu encrespar. Damião levantou-se, aproveitou que eu estava sentado e chutou minha perna.
Claro, o tempo fechou. Dei-lhe uns tabefes, levei outros. Lembro de uma vizinha gritar, enquanto nos estapeávamos:
"Esse menino vive arrumando confusão".
O menino era Damião.
Eu não sabia disso.
Difícil foi, depois do arranca-rabo, subir até a casa dele para pegar meu time de botão. Fui chorando porque realmente tinha em Damião um colega, um companheiro. Com quem mais eu jogaria botão?
Terminou ali. Nunca mais vi Damião, nem a mãe, nem o pai, nem a irmã dele. Nem Felipe. Fui embora da Otávio Carneiro como se eu fosse o culpado. Enfim...
Por que contei tudo isso? Porque aquele gol que o Deivid perdeu foi muito parecido com o que Damião desperdiçou.
Deivid, Damião... Dois Ds, dois gols perdidos...
Incrível coincidência.
  

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Da cobertura da CBF ao Botafogo campeão de 1989

Naquele começo de dezembro de 1988, antes da eleição de Ricardo Teixeira, eu tinha acabado de deixar a sucursal da revista Placar e seguira para O Globo, levado por Renato Maurício Prado, então editor de Esportes e que fizera a mesma troca. Jamais me considerei brilhante, somente esforçado - até hoje. Um pouco e autocrítica nunca é demais.
O jornal tinha uma senhora equipe de Esportes: como subs, Carlos Silva, Nilson Damasceno e Antônio Nascimento (atual editor); de redatores, Márcio Tavares, Julius Rocha, Fernando Calazans (hoje colunista) e Haroldo Habib; chefes de reportagem, Hideki Takizawa e Antônio Arruda; reporteres: Antônio Maria Filho, Marcos Penido, Mário Jorge Guimarães, Jorge Areias, Jorge Luiz Rodrigues, Álvaro Oliveira Filho, Marcelo de Moraes, Ricardo Prado, Ester Lima e eu. Certa vez, o insuspeito Roberto Porto (aliás, amigo de mais da metade da editoria) escreveu no Jornal dos Sports, onde tinha coluna, que se tratava da melhor equipe de jornalismo esportivo do Rio.
Isto posto, vamos ao que interessa: a eleição de Ricardo Teixeira. Nos dias que precederam o pleito, ele reuniu todos os repórteres que cobriam a CBF para um almoço. Na época, o presidente do pomposamente chamado "Comitê de Imprensa" era o queridíssimo Arthur Parahyba, já falecido. Parahyba, com quem tive a honra de trabalhar, era daqueles repórteres da velha guarda que perdiam a notícia, mas não perdiam a amizade. Ou seja, chapa branca. Mas era uma boníssima figura.
Em nome do "Comitê", o pobre Parahyba foi obrigado a fazer um discurso, patético registre-se. Na CBF ficava a nata dos encostados ou dos iniciantes, dentre os quais eu me inseria. O único que não se inseria nessa categoria era Oldemário Touguinhó (Jornal do Brasil). Mas lá estavam Israel Gympel (Rádio Record-SP), Baffinha (Jovem Pan), Osvaldo "Cachorrão" Pedroza, Silvio Barsetti (então Jornal dos Sports), Paulo Júlio Clement (primeiro Gazeta de Notícias e depois Jornal dos Sports), Mário Silva ou Wellington Campos (Rádio Nacional-RJ), Luiz Carlos Silva ou Elso Venâncio (para a Rádio Globo) e outros cujo nome não lembro. De vez em quando, Tino Marcos (Rede Globo) aparecia para algo mais importante.
Faziam uma cobertura sem postura crítica e se digladiando uns com os outros para ver quem ia na próxima viagem internacional da seleção. Eu, Silvio e Paulo Júlio éramos patos novos e não mergulhávamos fundo. O pessoal da Globo e Oldemário estavam acima das mesquinharias.
A certeza da vitória de Teixeira era total. Mas na construção da sua diretoria algumas coisas começaram a cheirar mal. Tal como o novo diretor de Futebol, o notório Eurico Miranda, que com Antônio Soares Calçada era dono do Vasco.
Também começaram os rumores de que Carlos Alberto Parreira, outras dessas unanimidades burras criadas pela imprensa, não viria para comandar a seleção, conforme Teixeira garantira aos jornalistas. Uns diziam que estava complicado para ele se livrar do contrato que tinha com a seleção da Arábia Saudita, que dirigiu na Copa de 1990; outros, que ele não estava a fim de se aporrinhar com o Brasil, fonte permanente de cobranças - preferia ganhar o dinheiro dele sem muita chateação.
Teixeira prometera divulgar o novo técnico da seleção no exato dia em que vencesse a eleição, que transcorreu sem problemas. Uma tensão ou outra, um cartola estadual ou outro que ainda não tinha aparecido, mas o filhote de Havelange se consagraria facilmente novo presidente da CBF. No começo da tarde, a fatura estava resolvida.
E a lista? E o novo técnico?
O tempo passava, a turma cobrava. Eis que aparece Eurico Miranda para avisar que o novo técnico da seleção era o sapientíssimo... Sebastião Lazaroni! Um camarada que em menos de três anos saíra da condição de preparador físico para a de bicampeão do Campeonato Carioca, primeiro com o Flamengo e depois com o Vasco. Estava, naquela altura, treinando um clube qualquer do mundo árabe, para onde vão todos os futebolistas que querem ganhar muito dinheiro e rápido. Claro que Lazaroni não fora sacado do bolso do colete: a futura cúpula da CBF já sabia que Parreira não viria e tratou de arranjar um estepe.
Não se pode dizer que Teixeira descumpriu a promessa de lançar uma seleção permanente, com comissão técnica formada. Também não se pode negar que trouxera um profissional que estava no Oriente Médio. Sua marca foi sempre essa: prometia uma coisa e a cumpria parcialmente. E foi levando, sempre insensado, todos esses anos.
A última grande aparição do presidente da CBF foi nos debates da Copa, no SportTV, depois que a Holanda eliminou o Brasil com toda justiça da Copa na África do Sul. Teixeira falou o que quis e como quis. Não houve críticas mais pesadas ao trabalho de Dunga, à sua postura, às suas escolhas. Ao contrário, os jornalistas presentes naquela entrevista ou estavam moídos demais pela derrota para não reforçarem os ataques que até então faziam ou perceberam que era malhar em ferro frio - seriam as mesmas respostas de sempre, de um cartola manhoso que despreza a imprensa.
Mas voltando àquela segunda-feira de janeiro de 1989, na Rua da Alfândega. A confusão custou a mim e a Jorge Areias, incumbidos de fazer a cobertura direta da eleição, um esporro em regra de Renato e uma dura geladeira de algumas semanas. Primeiramente, divulgara-se uma lista com 24 jogadores, à qual, uma hora depois, foi acrescentada nova relação, esta com seis outros nomes. Total de 30. Avisei a Areias que tinha mais gente. E prosseguimos a cobertura.
À noite, já na redação, Renato me chama:
"Fabio, que negócio é esse de que a lista não tem 24 nomes, mas 30? Ligaram lá do Sul perguntando isso. A Rádio Gaúcha está dando 30!"
A essa altura a primeira edição já estava rodando.
"É verdade, Renato...", respondi, com a voz quase inaudível.
"PU-ta-que-pa-RIU!", e se levantou indignado. Fiquei lívido. Toda a seção de Economia, logo ao lado, me olhava.Lá de longe me olhavam. Quase desmaiei.
Mal tive como dizer que havia avisado ao Areias o acréscimo dos nomes. Seguiu-se uma daquelas broncas que você jamais esquece, em que é chamado de incompetente para baixo. Estava certo de que, no dia seguinte, receberia bilhete azul.
Não foi assim. Fiquei encostado, "cobrindo" América e Bangu, que não tinham qualquer espaço no noticiário. Durou pouco tempo, mas foi doloroso. Poucos dias depois eu voltava para a cobertura da CBF, para aturar Lazaroni e seu português ininteligível.
Vieram as eliminatórias, os amistosos, os remanejamentos e fui para a cobertura do Botafogo, que em 1989 quebrou o jejum de 21 anos sem títulos. Tempos de Valdir Espinosa, Emil Pinheiro, Paulinho Criciúma, Maurício, Josimar, Renato, Luizinho, Mazolinha, Mauro Galvão, Wilson Gotardo...
Essa é outra história. Conto um dia desses.

E ele chegou para salvar a lavoura...

Faço questão de voltar 22 anos no tempo, quando cobri, para O Globo, a eleição de Ricardo Teixeira na presidência da CBF.
Em 1989, o cartola ainda era genro de João Havelange, o que lhe garantiu o apoio de quase todas as federações de futebol, presidida por uma gente que, até pelo aspecto físico, carecia de caráter e moral. No dia da votação, vi um entra e sai na antiga sede da Confederação, na Rua da Alfândega, Centro do Rio, de figuras ridículas, com cabelos e bigodes pintados de preto, tentando aparentar a juventude que a calva e as rugas lhes roubavam. Personagens lamentáveis, vestidas com gravatas berrantes sobre paletós descombinando, com a calças ou fatos (terno, lembro, é o que tem colete) de qualidade duvidosa.
Era essa gente que controlava (e ainda controla, só que hoje tem mais verniz) o futebol brasileiro. Pela descrição de cada um se pode calcular o que eram suas gestões.
Teixeira era, acima de tudo, apoiado pela imprensa. Não havia um único jornal, jornalista ou colunista que não o visse como uma figura arejada, conectada com o mundo que então se vivia. Sobretudo, achavam que ele era um personagem sem mácula, vindo da inicativa privada e, portando, em condições de dar ao futebol brasileiro a modernidade compatível com os tempos pós-Nova República. Essa mesma que legou José Sarney aos brasileiros, mesmo que por acaso.
Seus antecessores eram Octávio Pinto Guimarães e Nabi Abi Chedid. Octávio estivera por mais de uma década à frente da Federação de Futebol do Rio. Nabi vinha do Bragantino, que pouco tempo antes surgira no futebol paulista como modelo de um time bem montado e de administração ágil. O técnico era ninguém menos que Vanderlei Luxemburgo, então visto como esperança de novos dias em matéria de táticas e escalações. Mas, em 1989, ele não passava de um ex-lateral esquerdo do Flamengo, medíocre por sinal.
Octávio tinha contra si o amparo que dera ao almirante Heleno Nunes, aquele do "Onde a Arena vai mal, mais um no Nacional" - referindo-se ao desempenho do partido da ditadura e à utilização do futebol como pé-de-cabra político. Nabi tinha estreita relação com o notório Paulo Maluf, um dos delfins do regime dos generais que terminara, mas não estava esquecido.
Na presidência da CBF provaram-se inábeis e trapalhões. Octávio, magro e baixo, fumava desbragadamente com uma piteira, que lhe conferia um ar falsamente aristocrático e germânico, tal como sua Nova Friburgo. Tinha voz baixa, grossa, anasalada e um olhar estranhamente malévolo. Nabi era o contrário: grandalhão, gordão, falava cuspindo por trás das lentes grossas do óculos de aro quadrado. Era o esparro preferido do então presidente do Flamengo, o esperto Márcio Braga, que com a verve carioca de quem nasceu e foi criado na Zona Sul do Rio, porém jamais trabalhou, conseguia tirar-lhe a paciência com facilidade. Nas resenhas esportivas da TV, era de morrer de rir ver Nabi se esbaforindo, querendo bater em Márcio, apesar de não estarem no mesmo estúdio.
Pesou contra essa dupla o fracasso brasileiro na Copa de 1986, no México. Para variar, a CBF foi acusada de desorganização na elaboração dos trabalhos preparatórios. Preferiram atacar os dois cartolas e deixar passar batida as turrices de Telê Santana, que escalou um time pífio para a disputa do Mundial. Ninguém queria se indispor com o técnico, que quatro anos antes naufragara no Sarriá ao não saber mandar sua equipe segurar o resultado contra a Itália. Mas essa é outra história.
Para piorar a situação de Octávio-Nabi, os principais times brasileiros se fecharam numa entidade que propunha moralizar o futebol e dar-lhe a organização que a CBF parecia incapaz de montar: o Clube dos Treze. Ameaçaram romper com a entidade e montar um campeonato brasileiro paralelo. Seu presidente, Carlos Miguel Aidar, então comandante do São Paulo, tinha até o apoio da Globo para a transmissão dos jogos. A CBF já era descartável.
Para segurá-los e acalmá-los, a Confederação montou o famoso campeonato com o Módulo Verde e o Módulo Amarelo. No Verde, só o Clube dos Treze, acrescentado de três convidados; no Amarelo, o restante da antiga primeira divisão - tinha ainda o Azul e o Branco, equivalentes à terceira e quarta divisões. O Flamengo ganhou o Verde e, claro, se recusou a enfrentar o Sport Recife, vencedor do Amarelo, justamente porque não faria sentido algum ter disputado um torneio em tese mais difícil. O restante dessa história também já se sabe.
Contra toda essa bagunça, Teixeira vinha como salvação da lavoura. Turbinado por Havelange, o sogrão ainda presidente da Fifa, chegava com a incumbência maior de fazer um campeonato brasileiro mais racional (leia-se: com até 20 clubes) e conciliar o nosso calendário de eventos ao europeu, já que naquela época o êxodo de jogadores era intenso e vergonhoso. Além disso, foi-lhe atribuída a missão de montar uma seleção brasileira permanente, com comissão técnica montada e à disposição para correr o Brasil e o exterior vendo os melhores jogos e capinando os melhores jogadores.
Parte disso ele cumpriu, mas não demorou muito para cair na vala comum da politicagem que, pensava-se, era página virada. Afinal, ninguém se mantém no mesmo lugar por mais de duas décadas se não fizer acordos e não for generoso.
Mas isso eu conto no post seguinte.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O que espero do novo Van Halen

Vi o mais recente vídeo do Van Halen e aguardo ansiosamente o disco, que estava para chegar ao mercado terça-feira. Tattoo, a música em questão, não vai mudar a vida de ninguém, mas recoloca a banda nos trilhos depois de alguns anos de inatividade. Nesse meio tempo, brigas, saídas, escândalos provocados pelo alcoolismo, desmentidos e uma ansiedade geral para que voltassem à ativa.
Ouvi o grupo dos irmãos holandeses Alex e Eddie pela primeira vez numa coletânea rastaquera de um colega meu, Jonas, que estudava comigo no São Vicente. Era um desses balaios de gatos, que servem para a gravadora turbinar alguns dos seus artistas nas rádios. Era a matadora versão de You Really Got Me, do The Kinks - que se tivesse feito tudo do mesmo gênero, teria sido um dos pais do metal.
Tempos depois, não sei quem me apresentou o Van Halen I. Enlouqueci. Jamais tinha ouvido nada tão pesado. O disco era perfeito do começo ao fim. Por isso, não escondi a decepção com o Van Halen II e com Women and Children First, que vieram na sequência. São bons, mas não se comparam ao primeiro, que é irrepreensível.
A produção dos três é do craque Ted Templeman, responsável pelo sucesso do Doobie Brothers, que trabalhava associado a Don Landee na engenharia. A diferença entre o álbum de estreia e os que se seguiram é que não conseguiram repetir a agressividade do primeiro trabalho. Templeman, malandramente, diminuiu a pressão e o Van Halen passou a fazer dos shows sua catarse. Ao vivo o pau quebrava.
Depois disso vieram os bons Fair Warning, Diver Down e 1984, no meu entendimento superiores a VH II e Women... Mas o estilo da banda mudou: ficou mais elaborada e, em alguns momentos, pretensiosa. Em 1984, Eddie começou a brincar com os teclados e deu até uma cara progressivesca ao time. Surpreendeu muita gente, mas como David Lee Roth continuava à frente do circo, as pessoas aceitaram.
Só que Roth resolveu sair. Achou que não era justo ser uma espécie de empregado de luxo dos irmãos Van Halen. Partiu para uma carreira solo que começou com o pé direito, mas que, com o passar do tempo, foi cansando, sobretudo por causa da inconstância das bandas que formava. Antes de voltar ao rock pesado, gravou um EP que tinha uma releitura de I'm Just a Gigolo, galhofa pura. E quis manter esse espírito de gozação em Eat and Smile, apesar do trio estelar de instrumentistas: Steve Vai (guitarra), Billy Sheeham (baixo) e Greg Bisonette (bateria). Começou a cansar e Skyscraper e A Ain't Little Enough não repetiram o mesmo sucesso. Em Your Filthy Little Mouth desapareceu quase definitivamente.
Na outra ponta, o vaterano Sammy Hagar entrou na vaga deixada por Roth. Vindo do Montrose e de uma carreira solo relativamente bem sucedida, foi uma escolha estranha. Os fãs queriam alguém com a mesma pegada do antigo cantor e, além disso, torceram o nariz para um sujeito que em vários momentos dividiu a guitarra com Eddie - que reinava absoluto. 5150, o disco de estreia da nova formação, tinha alguns hits, foi bem, mas parecia faltar alguma coisa.
Em seguida veio OU812, uma espécie de continuação de 5150 até no nome. O auge foi com For Unknown Carnal Knowledge (forme a palavra com as iniciais), dos três disparado o melhor. Poundcake, que abre os trabalhos, é estupenda e a banda foi merecidamente premiada com o melhor clipe daquele ano - o ótimo Right Now.
Um CD ao vivo, Right Here, Right Now, trouxe versões da carreira solo de Hagar e até mesmo uma excelente releitura de We Won't Get Fooled Again, do The Who. O som é lavado demais, trabalhado demais, o que tira a naturalidade da banda. Não chega a ser um mau disco, mas não está na lista dos melhores de todos os tempos.
Balance fecha a passagem de Hagar pelo Van Halen, que saiu pelas mesmas razões de Roth: cansou-se da ditadura dos irmãos Alex e Eddie. Como tinha uma carreira relativamente bem sucedida antes, voltou à estrada por conta própria ainda mais turbinado. E com direito a levar nos shows material que ajudou a escrever enquanto esteve no Van Halen. Isso por si só era fator suficiente para agregar fãs de um e de outro.
Os irmãos sentiram o baque. Caíram no mais profundo silêncio, no mais negro limbo. Vez por outra um escândalo de bebedeira recolocava Eddie no noticiário. Alex nem isso: não à carreira solo, tampouco participação em projetos de outros músicos.
O período sabático durou alguns anos, quando resolveram voltar à estrada com Gary Cherone no lugar de Roth e Hagar. Aí a coisa desandou de vez: o ex-cantor do Extreme, banda de um único sucesso (More Than Words) e do guitarrista português Nuno Bittencourt, era uma figura deslocada. Apesar de o público adorar as frescuras de Roth, Cherone era mais afetado. E sua voz, menor que a de Hagar. Não conheço uma única pessoa que tenha escutado Van Halen III. E se não escutou foi porque, de cara, não gostou. Até a repetição do nome parece expressar um certo desânimo.
Mais um período sabático, mais escândalos envolvendo Eddie, que, dessa vez, é diagnosticado com câncer. Michael Anthony, o baixista desde sempre, resolve continuar trabalhando, agora a convite de Hagar. Os Van Halen consideram isso alta traição e rifam-no da banda.
Anthony, porém, mais parece aliviado do que triste com a demissão. Ao lado de Hagar, Joe Satriani (guitarra) e Chad Smith (bateria) funda o Chickenfoot. Dos quatro, somente Smith vive tempos de maré cheia, tocando com o Red Hot Chili Peppers e com Glenn Hughes. Mas, como se trata de supergrupo, é recebido com reverência, embora os trabalhos nem sejam tão grande coisa assim.
Os rumores sobre o retorno de Roth ao Van Halen aumentam. Uma junção de interesses provocada pela estagnação de ambos, Eddie-Alex e Roth. Mas e o baixista? Todos acharam que a punição imposta a Anthony seria suspensa. Os irmãos surpreendem ao colocar Wolfgang, filho de Eddie, na função. Mais do que nunca trata-se de uma empresa de família.
O pouco (ou quase nada) do que ouvi de A Different Kind of Truth me deixou animado. Gostava muito do trabalho de Anthony, mas não era ele quem fazia diferença - para continuarmos no mesmo adjetivo. A marca da banda, primeiro, eram Eddie e Roth, seguida da bateria estrondosa de Alex. Depois, Eddie passou a ser a única estrela de uma banda nivelada por alto, coesa e uníssona. Anthony faz parte de um universo de milhares de baixistas de boa qualidade e substituíveis.
Isso não quer dizer que o jovem Wolfgang vá fazer estrepulias. Papai e titio não vão deixar que um guri de 20 anos lhes roube a cena. Além disso, está chegando num quarteto em que três são marcantes e consagrados. Pato novo não mergulha fundo.
Melhor assim.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Notícias do Capitão Além

Quando era mais novo, meu amigo Velório (já falei dele aqui) me mostrou um disco de uma banda chamada Capitain Beyond. Era uma coisa curiosa: a capa estava perfeita, mas o vinil tinha um naco que impedia de ouvi-lo em boa parte. Mas ele, creio, se contentava com aquelas faixas que restavam perto do selo central da bolacha. Era uma edição da Continental, que no começo da década de 70 detinha aqui os direitos da Warner Bros.
Tratava-se de um LP "misterioso". Não me lembro se cheguei a escutá-lo. Rezava a lenda que aquela era a banda do primeiro cantor do Deep Purple, Rod Evans. E era mesmo. Anos depois, quando me veio às mãos uma edição americana em CD, da Capricorn Records, tratei de comprá-la.
Antes, uma ex-namorada me apresentou o segundo disco da banda, Sufficiently Breathless. Era uma formação ligeiramente diferente daquela do primeiro trabalho. O som continuava o mesmo: um rock pesado meio viajante, cheio de menções a mundos externos e internos, galáxias, civilizações, ondas de ácido lisérgico e visões esotéricas.
Mas, voltando ao primeiro disco, devo dizer que é muito bom. A banda não "era" de Rod Evans: ele era um dos integrantes, embora com a bagagem de ter passado pelo Purple e ter feito imenso sucesso com a versão de Hush.
Na verdade, o Captain Beyond foi formado em torno de Lee Dorman (baixo) e Harry "Rhino" Reinhardt (guitarra), egressos do Iron Butterfly (aquele mesmo de In A Gadda Da Vida, que nada mais é In A Garden Of Eden, só que pronunciado por um bêbado). Completava  a formação o excelente Bobby Caldwell (bateria) e Evans, que além de cantar ainda segurava uma percussão.
Esse primeiro disco tem uma curiosidade: como a banda tinha fechado um acordo com a Capricorn, na época em que saiu Duanne Allman tinha acabado de morrer num acidente de moto. Como a Allman Brothers era da Capricorn, ficou o tributo. 
O instrumental da banda era o ponto alto. Caldwell (sobretudo), Dorman e Rhino faziam uma mistura explosiva e integrada, à qual Evans se encaixava - que apesar do cabelão continuava um cantor com um acentuado vício "presleyano". Assim, quando as passagens pediam mais agressividade, a voz de Evans parecia sardinha num prato de leite condensado.
Mas nem por isso a banda fez pouco sucesso. Não era primeira divisão, mas não era terceira. Estava ali na rampa de acesso.
Para o segundo disco, Caldwell foi a baixa: mudou-se para a Inglaterra a fim de juntar-se ao Armaggedon, projeto capitaneado por Keith Relf, ex-cantor do Yardbirds que experimentava um período de maré baixa. Ao lado dele, Louis Cennamo (baixo) e Martin Pugh (guitarra), a banda fez um único e excelente (este sim!) disco. Era mais hard que o Capitain Beyond, que a essa altura tinha virado um combo de seis músicos.
Como a percussão de Evans ao vivo era péssima (é só ver os vídeos no You Tube: a falta de ritmo dele impressiona para um cantor), tiraram dele tal função. Caldwell foi substituído pelo percussionista Guille Garcia e pelo baterista Marty Rodriguez. Reese Wynans (futuramente com Stevie Ray Vaughan) entrou nos teclados, tornando o som da banda mais etéreo. Sufficiently Breathless não é um mau disco, mas, se comparado ao primeiro, a banda deu dois passos para trás.
A curiosidade é que, quando foi lançado, homenageou Barry Oakley, ex-baixista da Allman Brothers Band que morrera de forma parecida à de Duanne - queda da motocicleta. E meses depois.
O ano era 1973 e o fracasso nas vendas fez o combo suspender os trabalhos. Voltaria quatro anos depois e com o trio de instrumentistas original: Caldwell, Dorman e Rhino. O cantor era o desconhecido, mas excelente, Willy Daffern. O disco, Down Explosion, não foi uma "explosão" como o nome sugere, mas vendeu bem e seguramente. Se o Capitain Beyond tivesse ido do primeiro para o terceiro LP, teria feito uma carreira mais bem sucedida.
Só que Daffern era músico daqueles dispostos a se tornar a estrela que jamais havia sido nos obscuros projetos anteriores. Os outros três tinham certa estrada, ligação com bandas importantes (Iron Butterfly, Johnny Winter, Armaggedon) e viviam o rock style of life - que inclui muita bebida e muita droga. O cantor começou a bater de frente com os demais e, claro, a carreira da nova formação foi curta.
Daffern pouco depois se juntou à G-Force, banda de Gary Moore, com o qual gravou somente um disco. E chocou-se com o próprio Moore, que contava com um time de apoio excelente - Tony Newman, ex-Tony Williams Lifetime, no baixo; e Mark Nauseef, ex-Ian Gillan Band, Thin Lizzy e Elf, na bateria.
O resultado dessa história são discos cultuados e um grupo de músicos que, por excesso de doideira ou de falta de direção, perderam a chance de terem uma sólida e respeitável carreira. Mas o Capitain Beyond merece ser ouvido com atenção. Tanto que tenho os três trabalhos.

A Grécia morre lentamente

Não sei se foi o ex-ministro Delfim Netto que cunhou a frase ou se ela existe desde que, com a dissecação de cadáveres por pura curiosidade, o homem chegou à Medicina: "A diferença entre o remédio e o veneno é a dose". Tal como acontece com a Grécia atualmente, que, ao seguir a receita proposta pelo FMI, certamente entrará numa derrocada que vai estancar o quase insignificante progresso do país e torná-la num território em que sociedade e governo se dissociaram. Nesse vácuo, surgem os radicalismos, a xenofobia, as culpas que um atribui ao outro. Numa única palavra: caos.
Os gregos têm pouco a oferecer ao mundo hoje, além do passado glorioso: turismo, produtos beneficiados oriundos da agropecuária (vinhos, azeite, azeitona, queijos), artesanato... Tudo de baixíssimo valor agregado. Não têm uma indústria de base, importam quase tudo que consomem de bens materiais e cada vez mais são um entreposto chinês naquele pedaço da Europa que fica perto do Oriente Médio, da Rússia e das ex-repúblicas soviéticas.
Assim como Portugal, a Grécia é o caso típico do primo pobre que é convidado a cear na casa dos parentes ricos, mas que, antes, deve se adaptar à liturgia do salão que passará a frequentar. Roupas e acessórios caros, melhoria na aparência, um bom carro para impressionar na hora da chegada. Isso para o abonado pode ser pouco, mas para o remediado é uma despesa incomensurável. Exatamente isso aconteceu com o país ao adentrar à zona do euro: foi obrigado a elevar seus gastos para arcar com o novo status.
Daí que, antes, uma dívida interna que era calculada numa moeda desvalorizada, foi convertida para outra cujo valor se baseia numa cesta na qual pesam mais a herança do marco alemão e do franco francês. Bonito a curto prazo, mas catastrófico a longo. Portugal está pagando o mesmo preço: país desindustrializado, exportador de produtos de baixo valor agregado etc. etc. A Espanha e a Itália, que têm muito mais a oferecer, se encontram em condição parecida porque suas respectivas moedas lhes propiciava uma dívida interna administrável.
O euro trouxe euforia. De repente, todos tornaram-se ricos. Artificialmente, registre-se. A Turquia, que durante muito tem foi vista como uma espécie de parente indesejável pelos integrantes mais fortes da União Europeia - pelo imenso "pecado" de ser um país muçulmano -, hoje levanta as mãos para Alá por não ter sido admitida. Outras nações, como Romênia, Hungria e República Tcheca, que têm prazo de adesão até 2015, já estão revendo a hipótese de abrirem mão das moedas nacionais.
A receita imposta à Grécia vai terminar por matá-la. O pacote aprovado pelo Parlamento é draconiano: emperra um país cujas taxas de crescimento são ínfimas; indica demissões em massa no serviço público como forma de desinchar a máquina estatal. Em troca, o país recebe 130 bilhões de euros para pagar suas dívidas. A equação é complexa, pois paga o débito (e reebolsa os finaciadores do empréstimo a longuíssimo prazo, com juros escorchantes), mas herda uma multidão de desempregados num país em que o Estado é o principal patrão exatamente porque a iniciativa privada é fraca. Num cenário de recessão generalizada, os gregos não conseguirão atrair indústrias capazes de gerar-lhes receita por meio da cobrança de impostos.
Os únicos que têm condições de investimento, os chineses, jogam pesado somente onde existem grandes obras de infraestrutura a serem feitas, em países de imensos recursos minerais - tais como os da África. O que a Grécia tem a oferecer nesse campo? Nada. Ou vocês acham que se tivesse um solo rico e imensa capacidade de abrigar uma indústria de base, já não teria sido descoberta?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O ministério não é da ministra

Li a coluna de Reinaldo Azevedo sobre uma entrevista concedida pela hoje ministra Eleonora Menicucci, que estava (creio, o texto não esclarece) no site da Universidade Federal de Santa Catarina. Considero Reinaldo o mais brilhante cronista/articulista da imprensa brasileira atualmente. Tem um poder de argumentação de dar inveja a qualquer pessoa que admire um raciocínio elaborado. Dá gosto lê-lo, por mais que se disconcorde dele. E é sobre isso que pretendo falar: concordo, somente em parte, dá análise que Reinaldo faz das palavras da ministra.
Já aprendi que estar no governo, qualquer governo, é exatamente aquilo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso certa vez disse: "Esqueçam tudo o que eu disse e escrevi". Do outro lado, na academia, se tem o mundo ideal, no qual os debates filosóficos e ideológicos se arrastam sem que ninguém convença ninguém. Há espaço para o contra e o a favor. Como disse Millor Fernandes, com sua inegável sabedoria de vida e com um brilho incomum de enxergar os fatos, "a teoria na prática é diferente".
Na época da entrevista, Eleonora era uma professora, uma militante, enfim uma pessoa que tinha compromisso somente consigo mesma e com os grupos nos quais atuava. A descrição que ela faz sobre o aprendizado do chamado "auto-aborto" é abjeta.
Diz ela com todas as letras que foi para a Colômbia aprender técnicas abortivas via sucção, que sem eufemismos quer dizer o seguinte: enfia-se uma espécie de aspirador de pó na vagina da paciente, liga-se o aparelho e o feto é sugado como lixo. Em suma, uma violência em todos os sentidos.
E quem escreve aqui é uma pessoa simpática ao aborto, desde que respeitados os preceitos da Medicina. A "técnica" descrita por Eleonora é, acima de tudo, uma brutalidade e uma estupidez.
Isso representa dizer que vem para o governo pronta para pôr em prática todas as ideias que aprendeu e acumulou nos anos de militância, política e social? Claro que não. Inegavelmente ela tem contribuições a dar, mas não será a ministra quem vai ditar os rumos do seu ministério. O rumo do ministério, de qualquer ministério, quem dá é o Palácio do Planalto. Vão dizer: se fosse assim, não tinha havido tantas falcatruas. O rumo é a parte visível; a invisível é sempre incontrolável, sobretudo à distância.
Não entro no mérito sobre se Eleonora é uma figura qualificada, "quadro técnico" como convencionaram chamar. Também não me importo que a hoje ministra militou na luta armada ou se foi para a cama com homens e mulheres, e homens e mulheres ao mesmo tempo. Acho essa uma bobagem moralista que pode não engrandecer a pessoa, mas nada acrescenta ao debate. A vida sexual é sempre relativa. Me incomodam muito mais as drogas e o alcoolismo. E olhe que eles são mais frequentes do que se imagina nos círculos de poder.
Considero Eleonora o retrato de uma época. Calculo que em muitas questões ela continua pensando exatamente como 40 anos atrás, mas em outras deve ter evoluído. Digo "deve" porque não posso garantir nada. Como as pessoas mudam de opinião e reveem posturas, deduzo que a ministra tenha passado pelo mesmo processo.
De qualquer forma, ela vem de um momento na vida do país em que aquilo que menos existia era bom-senso. A direita e a esquerda radicais se unem na boçalidade e na ausência de visão. Querem mudar o mundo a fórceps - e aqui não faço gracinha com a questão do aborto.
Eleonora deve ter passado o diabo na prisão. Difícil pedir moderação a uma pessoa que provavelmente foi estuprada. Quantas vezes? Sei lá. O estupro é uma arma psicológica das guerras. Aconteceu quando a Alemanha invadiu a Rússia, quando a Rússia tomou a Alemanha, quando os Estados Unidos devastaram o Vietnã, quando os sérvios atacaram a Bósnia. Nas ditaduras, a violência sexual contra homens e mulheres é uma das mais comuns torturas.
Quem sabe o que acontece no pau-de-arara admite que a masculinidade ou feminilidade são completamente destruídos. O que restava da integridade acaba ali. Ou já se esqueceram daquela cena do Tropa de Elite I, quando o Capitão Nascimento (esse herói vingador do imaginário popular nacional) manda um dos seus soldados trazer um cabo de vassoura para empalar um traficante? A simples ameaça de ter algo a entrar-lhe pelo ânus faz com que o bandido confesse onde está escondido o traficante Baiano.
Ninguém que passa pela barbárie sai melhor, mais humano. Sai certo de que seus preceitos políticos, suas base ideológicas, estão rigorosamente corretas. Se a reação do Estado é devastadora, sinal de que a ideia que seus adversários pretendem transmitir é perigosa, revolucionária, transformadora.
A ditadura militar brasileira (assim como qualquer ditadura) apenas deu razão àqueles que lutaram contra ela. Da mesma maneira que a invasão do Iraque ou do Afeganistão somente alimentou o radicalismo islâmico.
A ministra já foi cobrada sobre seu passado. Não deu a melhor resposta em relação a questão do aborto, mas muita da histeria moralista que se viu de alguns setores era de encomenda. Algumas das figuras que se manifestaram contra ela não têm sequer envergadura moral para criticá-la, pelo tanto de dinheiro público que são acusadas de malversar. 
Eleonora não precisa da minha defesa, tampouco concordo com sua postura de vida, seja ideológica ou sexual. Me considero um conservador, mas acho graça dos ataques que ela recebeu, todos voltados para questões de pouquíssima importância para a vida do brasileiro. Se houver um enquete verdadeira, sem pressões dogmáticas ou sociais, verão que muito mais pessoas do que imaginam são favoráveis ao aborto.
No momento em que regularizarem (e isso jamais será feito) a prática e garantirem que para a retirada do feto o processo seja de acordo com o que manda os manuais de Medicina, não tenho a menor dúvida que os números explodirão. E com isso virá outra constatação: a de que educação sexual do brasileiro é precária. Afinal, privilegia-se o prazer na relação sem se importar com consequências e sequelas.
A entrevista de Eleonora à UFSC é infeliz sob todos os aspectos. Demonstra uma conduta nos relacionamentos que para muitos pode ser considerada promíscua. É equivocada, sobretudo, no que tange ao aborto, quando defende um método calhorda e machista - embora a hoje ministra não admita isso. Mas isso não representa que ela vá ditar as regras do ministério que ocupa, formado sobretudo por uma equipe de técnicos que impedem que se sucumba a desvios ideológicos.
Fosse assim, cada um faria o que quer e bem entende. E você sabe perfeitamente, Reinaldo (a quem profundamente admiro, faço questão de ressalvar e ressaltar), que não é assim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Estado é mau gestor e tudo te faltará

Claro que o título é uma brincadeira com o preceito bíblico. Mas é  mais pura verdade. Acompanhei o começo da privatização de perto: trabalhava num jornal já extinto, que era visceralmente contra a venda das empresas que pertencem à União. Havia uma razão oculta e cretina por trás da linha editorial, mas isso não vem ao caso. O fato é que quando o governo Fernando Henrique começou a leiloar estatais, ouvi chorrilhos de bobagens. A baboseira começava no Consenso de Washington e ia na direção da "alienação" das nossas riquezas. Como se um dia essas mesmas "riquezas" tivessem pertencido ao brasileiro.
Nesse raciocínio burro, enviezado, ninguém jamais parou para pensar no tamanho do Estado brasileiro. Era dono de tudo e, para manter essa máquina, tinha que arrecadar. Impostos, taxas e contribuições existem exatamente porque esse elefante é pesado, guloso e indolente. Vivemos ainda a primavera das privatizações, que chegam com pelo menos 50 anos de atraso.
Corrigir as distorções de um sistema em que o governo ainda é o pai de todos leva décadas, talvez séculos. Daí porque o Estado cobra tanto e concede pouco. E mesmo aquilo que devolve vem com custos invisíveis. Um estado grande é necessariamente corrupto. Para as coisas andarem e as parcerias entre poder público e entidades privadas saírem do papel, paga-se. Na ponta, o cidadão ressarce o empresário que foi extorquido. No meio do caminho, até mesmo com eleições uma firma particular que tenha interesses públicos tem de contribuir. 
A distorção nas relações é a principal marca do Estado brasileiro. A mão do governo está em ramos dos quais deveria passar longe.
Voltando  no tempo, acompanhei a privatização da Vale, na Bolsa de Valores do Rio. O Centro da cidade virou uma praça de guerra: a polícia teve de partir para cima dos debilóides que faziam oposição à venda da mineradora. Esses mesmo debilóides estão aí, agora no governo. É estranha a marcha da vida: o radical de ontem é o conservador de amanhã. 
A Vale, por conta da privatização, tornou-se uma das maiores mineradoras do planeta. Mas não pertence aos brasileiros! - bradarão os precipitados. Pouco importa: o cidadão não quer ser dono de nada; quer que a ex-estatal contribua, com seus impostos; pague o que é devido e isso volte na forma de saúde, educação, habitação popular, infraestrutura, cidadania enfim.
E transportes? Os coletivos e seus corredores têm de ser privados. Aeroportos, estradas, ferrovias, hidrovias, portos, nada disso deve ficar nas mãos do Estado. Enquanto foi cuidado pelo poder público, pereceu. Pergunte a qualquer motorista se ele prefere pagar pedágios e andar numa estrada bem pavimentada, sinalizada, segura ou se ele não quer pagar tarifas e trafegar numa rodovia precária, esburacada, insegura? O custo de um carro quebrado, seja particular ou um caminhão de entrega, é sempre muito maior do que o gasto com os pedágios. Sem contar que o pedágio não tira a vida de ninguém, como faz um asfalto maltratado ou uma via mal sinalizada.
Eu prefiro pagar para trafegar num aeroporto confortável, que abrigue vários voos ao mesmo tempo num período de alta, como Natal ou Carnaval. As tarifas vão baixar? Se a operação for eficiente, sim. Voo atrasado que não seja por causa de fatores climáticos é prejuízo. Aeroporto que tem dificuldade em despachar e receber aeronaves representa gasto com combustível, com maior número de tripulações, com manutenção, com pessoal de terra. Significa ainda clientes insatisfeitos e descrentes da competência da companhia.
A Vale foi vendida? Ótimo. Veja no que se transformou. Antes era uma empresa pública privatizada por um pequeno grupo, que quando foi removido nem ficou tão triste assim - um dos filhotes está hoje aí e é um dos bilionários brasileiros. As teles foram vendidas? Hoje não existe mais aquela máfia que traficava telefone e que vendia com imenso ágio quem quisesse ter uma linha. O aparelho hoje é barato, o celular está ao alcance de todos. 
As rodovias estão nas mãos de concessionárias? Que maravilha! Experimente rodar pelas estradas paulistas e as compare com as cariocas. Os aeroportos vão passar à inciativa privada? Oremos que não fique um único nas mãos do Estado. Ou alguém está satisfeito com as condições do Galeão, onde até urubu já foi fotografado no saguão? Ou o JK, que tem as dimensões de uma rodoviária?
Falta a Petrobras, que assim não vai ficar refém de injunções partidárias. Ou as ferrovias brasileiras. Ou as hidrelétricas. Vendam tudo e deem ao brasileiro somente o lucro, ele que já vem arcando com o prejuízo há décadas.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Estado da arte ou a arte de olhar a vida

Dias atrás, lendo no blog do meu irmão (V8 and Vintage blog; põe aí no seu marcador), me deparei com a pergunta: por que ninguém quer um relógio de corda? Cheguei a respondê-lo: por puro comodismo e porque as pessoas não estão acostumadas a um objeto "estado da arte".
Antes de entrar nesta definição, vamos ao moto deste artigo: um belíssimo Omega Seamaster, ali do final dos anos 50, com o mesmo calibre do raro Omega Ranchero, o 267. Um Ranchero está cotado em cerca de US$ 4 mil num site americano, algo que dá por aqui dá quase uns R$ 9 mil. Naturalmente que não é um relógio qualquer, como não é o Seamaster que utiliza o mesmo calibre.
Não importa quanto meu irmão pagou por ele - digo apenas que foi uma ninharia em troca daquilo que representa. Está em condições que, se tivesse que julgar, daria nota 7 com viés de alta. O fundo exibe aquela pátina bonita do envelhecimento natural. A pulseira, de couro, é como milhares de outras; representa uma época na qual somente peças especialíssimas tinham pulseiras assinadas. O pecado é a tampa da caixa, adaptada. Mas nada que não se possa arranjar - inclusive, dei a ele a dica de um site australiano que trabalha com tampas de Omega antigas e, entre preço e tarifas, vale a pena trazer.
No post que publicou, dizia-se impressionado com tictac assemelhado à batida de um coração. Até brincou: enquanto outros param, ele continua - e por pelo menos 50 anos.
Mas pergunta, com certa angústia, a razão pela qual as pessoas abandonaram os relógios a corda, ou "manually wound". Não foram somente os tempos modernos, mais corridos, que levaram a isso.
A explicação é histórica. Com o surgimento do relógio automático, nos anos 50, bastava o balanço do corpo para que enchesse a reserva de marcha. Assim, se usado todo dia, estaria permanentemente funcionando; só pararia se ficasse muito tempo fora do pulso. Os automáticos tornaram os de corda obsoletos: poupava o dono de girar a coroa todo dia para fazer a peça trabalhar.
Mas os automáticos também foram ultrapassados. O relógio a quartzo surgiu no final da década de 60 e, nos anos 70, tomou o mercado. Os japoneses processaram essa revolução que, por pouco, não sepultou a relojoaria suíça. Baratos e movidos a microbaterias, inundaram as lojas. Era o tempo ao alcance de todos.
Não pensem, porém, que eram peças de segunda categoria. Acessíveis, sim, mas de bom nível e precisão invejável. Aos suíços restou apenas uma saída: unir-se aos japoneses num campo em que estavam perdendo de goleada.
Melhor assim, pois foi como a indústria relojoeira europeia sobreviveu. Associada a iniciativas pioneiras e visionárias de poucos empresários, renasceu.
E voltou ao passado.
Entra aqui o que chamam em inglês de "state of art": o artesanato em alta tecnologia. Uma Ferrari não é cara somente porque tem esse nome, mas porque sua produção é reduzida, emprega materiais mais nobres e, sobretudo, um exemplar leva muito tempo para ser construído. É feita com calma, por profissionais altamente qualificados, professores em seus ofícios e muito bem pagos. Assim, nada mais justo que o preço ser estratosférico.
Transferindo para a indústria relojoeira, tal conceito pode ser atribuído a alguns automáticos e os de máquina a corda. A pressa aqui é inimiga mortal da perfeição. Montar uma peça leva tempo, requer paciência monástica e é voltada apenas aos amantes da relojoaria.
São aqueles que admiram exemplares quase exclusivos, que resgatam sobretudo a história. Sabem, por exemplo, que um Omega Speedmaster Professional hoje usa o calibre 1861, foi à lua (e nela pousou) com o calibre 861, que descende do Lemania 321. 
Isso pode parecer uma bobagem para muita gente. Talvez realmente seja; seria a "cultura inútil". Mas é, sobretudo, a explicação para o "estado da arte".
Tudo que se encaixa nessa categoria é caro, único, voltado a um público específico. Quem nele se insere não está preocupado com o senso comum da pressa diária e das facilidades tecnológicas. As adota, claro, e em alguns ramos da vida é ate escravo delas. Mas ainda não perdeu a noção da poesia dos objetos. E dispõe de breves espaços de tempo para admirá-los.
Como o tictac do bravo Omega Seamastar, calibre 267, que 50 anos depois trabalha com disposição invejável. Ou o Jaeger LeCoultre modelo Service Hydrographique, da Marinha francesa, guardado com carinho no fundo do armário, contando com quase 70 anos de idade e funcionamento perfeito.
Ou o Speedmaster Professional que não sai do pulso, xodó que nos torna um pouco astronautas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

No fundo, as eleições municipais

Volto ao meu próprio blog para comentar a greve dos policiais da Bahia. De um lado, um governo indolente. Do outro, um movimento chefiado por cidadão que se pode classificar como um oportunista. Como pano de fundo, as eleições de outubro, que têm tudo para ser das mais sujas dos últimos tempos.
Antes de entrar no caso baiano, vou voltar ao Pinheirinho. Quem leu o noticiário, percebeu que a coisa ali era sobretudo eleitoreira: de um lado, o governo Alckmin tentando tomar as rédeas de um processo que tem tudo para o PSDB sair derrotado, criando um fato que, em tese, lhe seria favorável - a reincorporação de um terreno sob o primado da lei. Do outro, os petistas que pegaram carona numa operação desastrada, efeito de uma polícia despreparada e preconceituosa.
Quer dizer: ninguém tem razão e no meio de tudo a população, que fica refém do "quem dá mais". Claro que nesse processo o PT capitalizou melhor e não faltaram representantes do partido pregando que os desalojados do Pinheirinho sejam contemplados pelo Minha Casa, Minha Vida.
O governador Alckmin se viu refém do fogo amigo da incompetência policial, embora a lei estivesse ao seu lado. E larga atrasado numa corrida em que Fernando Haddad segue tranquilo, possivelmente contando com o apoio de Gilberto Kassab, que leiloa o apoio assim como a biruta do aeroporto segue o melhor vento.
Na Bahia, o pano de fundo é o mesmo. O chefe dos grevistas é um certo Marcos Prisco, que já foi expulso da PM baiana e tornou-se sindicalista profissional. Imiscuiu-se até em movimentos grevistas de policiais em outros estados, como se tivesse mandato para tal. Colocou a categoria a serviço dos seus interesses e, certamente, já está se alavancando para algum cargo eletivo - o de deputado estadual escapou-lhe recentemente.
Isso não quer dizer, porém, que o governo de Jaques Wagner esteja certo. Ao contrário: se os policiais estivessem minimamente contentes, não se chegaria a esse ponto de animosidade. Populista e aparentemente mais focado nas trocas de cargo na Esplanada dos Ministérios (que lhe rendem pontos na bolsa política de futuros), pretendia segurar a categoria à base de promessas e enrolações. Tudo em nome da eleição municipal.
O paiol, porém, explodiu. Fez imenso estrago nas pretensões de Wagner em influir pesadamente na disputa de prefeituras fortes, como Salvador, Ilhéus ou Feira de Santana. Não quer dizer que o PT tenha sacramentado a derrota nas urnas, mas o motim dos policiais será colocado na conta do governador quando outubro chegar. Para quem perdeu um ministro (Mário Negromonte), não conseguiu fazer outro (Juca Ferreira, na Cultura) e ainda teve de trazer para perto o ex-presidente da maior estatal brasileira (José Sérgio Gabrielli) a fim de limpar-lhe a pecha de incompetente, mas turbiná-lo para a sucessão em 2014, Wagner está navegando em maré baixa.
O pior é que a greve dos policiais tende a se espalhar. No Rio, já há notícia que dentro de em mais alguns dias os PMs vão cruzar os braços. Não estranha: Sérgio Cabral Filho enfrentou meses atrás o levante dos bombeiros e safou-se mal. Não foi pior porque o movimento perdeu a cabeça na radicalização. Mas agora, se minimamente bem conduzido, jogará o Estado no caos, obrigando o governador a recorrer às Forças Armadas para fazer a segurança.
Se a categoria estiver mobilizada e não cometer o erro de invadir prédios públicos nem de fechar os canais de diálogo, faz um estrago de imensas dimensões. E arrebenta os cacifes de Cabral para outubro próximo.
Cada dia com sua agonia, diz o mote popular. A de Wagner está no auge, a de Cabral nem começou.