quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O que me move


Não tenho ídolos. Nunca tive alguém que admirasse ou que quisesse ser igual. Sei que isso não é muito comum, e é verdade. Nas minhas fantasias, sempre quis ser eu mesmo, vivendo uma condição de destaque. Grande músico, grande escritor, grande piloto de carros, grande qualquer coisa. Nunca me enxerguei como Steve McQueen ou Graciliano Ramos.

Então, não entendo a idolatria. E não entendo pelo simples fato de enxergar nesses, que tantos colocam nas alturas, somente a condição humana de cada um.

Vou dar um exemplo: tenho inúmeros discos, entre LPs e CDs, de Miles Davis.

Ele foi um tremendo mau caráter. Roubava música dos outros, roubava os colegas de banda, não respeitava a mulher alheia, teve dois filhos que não reconheceu (e eles a ele!)... Só que não vou me desfazer nunca dos seus trabalhos. São, em grande parte, divinos; alguns deles definitivos.

O músico estava acima de qualquer avaliação, o homem não. O primeiro construiu uma carreira irretocável, o segundo era um miserável da pior espécie. Mas um não anula o outro.

É possível perfeitamente que o brilho, a genialidade, convivam com o monstro que cada um carrega em si. Não sou versado em filosofia chinesa, só que desde muito sei que o Yin e o Yang estão dentro da mesma personalidade.

Então, por que o choque de alguns? Por que o Pelé não reconheceu a filha que morreu, assim como fez o ex-vice-presidente José Alencar? Por que o John McAfee é um crânio da informática e viciado em altíssimo grau? Por que o John Kennedy usou Marilyn Monroe e teria sido um dos responsáveis pela depressão que a levou à morte? Por que Diego Rivera não se importou quando Frida Kahlo foi para a cama com Leon Trotski? É isso aí...

O homem é isso aí.

Mas me incomoda quando começam a verberar contra a condição humana. Quando, por causa de uma suposta condição de ídolo, de exemplo, se perca a dimensão do erro, do engano.

O que é a idolatria senão um grande trabalho de imagem? É o mesmo marketing que torna bom algo ruim. E precisamos realmente que nos digam quem e o que consumir?

Ora, por favor! Tenhamos alguma dignidade e, sobretudo, o mínimo de inteligência. Quem espera que o ser humano seja a expressão da perfeição, está no mundo errado. É um ingênuo, para dizer o mínimo; ou burro, para dizer o máximo.

Nem seu pai você idolatra? - podem perguntar a uma hora dessas. Não. Meu pai é um grande cara, um sujeito sensacional, meu maior e melhor amigo (divide essa condição com meu irmão), porém o erro faz parte da natureza dele, assim como da minha. Erramos, e muito, e feio. E daí? O bonito das relações é dar a elas a dimensão exata. Adoro meu pai, meu irmão, minha irmã, minha mãe, meus filhos, minha mulher, só que preciso dar a eles uma condição real, paupável.

O que são as religiões a não ser a expressão ilógica, mas concreta, da idolatria? Então, você não acredita em Deus? - posso dar a entender. Acredito, vejo-o em todas as coisas, sobretudo nos erros. Por que nos erros? Porque sempre aprendo mais com eles.

E em Jesus? Em Buda? Em Moisés? Em Maomé? Todos grandes líderes, ungidos certamente com algo que poucos seres humanos têm ou terão. Respeito-os - muito! Eram certamente dotados de algum tipo de elevação moral, ainda que não fosse congênita, mas adquirida. São mestres, não ídolos. Sou deles um aprendiz, não o tolo que os segue cegamente. Aliás, fé cega, faca amolada.

Quero as pessoas como são, sem revestimentos. Gosto da falha, do equívoco. (É nesses momentos que a humanidade avança.) Quero poder gostar delas, ou detestá-las. Para isso, não posso abrir mão do senso crítico.

É o que me move.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Ao menos alguma grandeza

Vinha me furtando a escrever sobre Oscar Niemeyer porque criou-se um clima de "ame-o ou deixe-o", por mais que o bordão da ditadura possa parecer um sacrilégio se relacionado ao arquiteto. Houve quem o elevasse às alturas pela legado que deixou, assim como têm aqueles que desejam diminuí-lo devido às suas posições políticas. Nem uma coisa nem outra servem para qualificá-lo com alguma precisão.

Niemeyer, para mim, foi um homem coerente com seu tempo. Coerente com a incoerência, quero dizer. Não conheci nenhum intelectual de esquerda, no Brasil ou no exterior, que vivesse franciscanamente, da mesma forma que não soube jamais de alguém da direita, católica ou não, na mesma condição. De Sartre a Gustavo Corção, de John dos Passos a Alceu Amoroso Lima, de Carlos Lacerda a Eric Hobsbawn, jamais houve lugar para remediados financeiramente. A intelectualidade sempre custou caro; a formação de ideias é para poucos ungidos.

Os sistemas se sustentam na intelectualidade. Para cada facínora de esquerda ou de direita, há por trás um ideólogo, um pensador. Hitler tinha Alfred Rosemberg em seu governo; Stalin sustentava boa parte da sua condução política nos escritos de Gramsci; Roberto Campos deu um toque de finesse e de ironia à ditadura militar brasileira, assim como Raul Ryff e Darcy Ribeiro foram eminências na gestão de Jango.

Niemeyer se apaixonou pelo comunismo e por ditadores quando era necessário gostar deles. O mundo era ideológico, coisa que, hoje, parece uma imensa bobagem. Está aí a China, uma feroz ditadura comunista, gozando das satisfações e delícias que somente o capitalismo é capaz de proporcionar. Naquela época, não. Ou era uma coisa, ou outra.

Os cânceres do comunismo ainda não tinham vindo completamente à tona. E naquele socialismo ingênuo, quase estúpido, se acreditava que as massas precisavam de líderes para guiá-las ao paraíso da igualdade.

A geração do arquiteto, é preciso recordar, foi testemunha da exploração selvagem do homem pelo homem. (Concordemos que a selvageria hoje é um pouco menor?) Niemeyer nasceu não muito tempo depois da abolição da escravidão no Brasil. Da mesma maneira, viveu os efeitos da exploração dos "trustes" na economia nacional. (Deve ter queimado bondes da Light, o Polvo Canadense) Presenciou o massacre político da América Latina, da Ásia e da África. (E quedas e assassinatos de Patrice Lumumba, Jacobo Arbenz, Mossadegh...)

Ou as revoluções que vimos nesses continentes (e mesmo algumas da Europa) foram um mero convescote de desocupados? As guerras de libertação, um passatempo inconsequente. Ainda que em muitos casos o que veio depois não fosse muito diferente do que havia antes, não é possível acreditar que levantes se realizaram por pura carnavalização da política.

Não culpo Niemeyer por pregar o comunismo e viver numa casa no centro de um terreno de quase mil metros quadrados, cercada pela mais bela Mata Atlântica. Uma casa simples, é verdade, mas inalcançável ao proletariado de qualquer nação comunista. E como ele, outros.

Affonso Eduardo Reidy ainda tentou misturar as classes no belo conceito do Conjunto do Pedregulho, no Rio. Um condomínio inecreditavelmente humano, com apartamentos de um, dois e três quartos (dúplex!) dentro de um complexo que teria quadra de esportes, posto médico, jardim de infância, escola primária e piscina privativa. A localização? Nada mais working class do que São Cristóvão, perto do Centro, da Zona Portuária e da Zona do Meretrício.

Evidentemente que o sonho não deu certo. Assim como falhou a junção de estratos sociais nas quadras das asas de Brasília, pretendida por Niemeyer e Lúcio Costa. Aquilo que uniria pobres e ricos, trabalhadores braçais, servidores e senadores, ficou no papel. Os contracheques de muitos os expulsou para as então cidades-satélites.

Criticam Niemeyer, sua arquitetura e suas posições políticas de maneira hidrófoba. Já trabalhei em prédios desenhados pelo arquiteto e não gostei, pois falta-lhes a luz natural que tantou prezou em vários projetos. Mas, para mim, são o retrato de uma época, de outro Brasil, certamente mais pobre, incrivelmente desumano e terrivelmente desigual.

Recentemente, satanizaram Monteiro Lobato por causa de correspondências abertamente racistas e da descrição que faz de Tia Nastácia. Ora, para um homem nascido na segunda metade do século 18, o que se haveria de esperar? Quantos não foram criados ouvindo a catilinária de que preto não era gente e não merecia respeito? E que o judeu é avarento e usurário? E que o indígena é preguiçoso? E que o cigano é ladrão? E que o homossexual é sem-vergonha?

Pelo conceito de alguns que tenho lido, devemos nos envergonhar de Monteiro e de Niemeyer pelas ideias que manifestaram. A intransigência com eles, isto sim, é a burrice siderúrgica, a selvageria do politicamente correto, a estupidez da análise rasa, a incapacidade da falta de conteúdo. Reagem às ideias do arquiteto com uma vergonhosa virulência, como se as teses que professassem fossem as únicas e as mais aceitáveis.

Se ao crítico falta grandeza, envergadura, não pode faltar visão de mundo. Passa a ser mesquinharia.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Desalento carioca

Sérgio Cabral é um choramingas. Herdeiro da tradição dos péssimos políticos, sobretudo os fluminenses, abriu a boca para falar chorrilhos de bobagens sobre a redivisão dos royalties do petróleo. A mais recente é que, com o projeto aprovado no Congresso, a Copa e a Olimpíada estão ameaçados.

Claro que é mentira, evidentemente que isso não tem a menor conexão com a realidade. Os dois eventos envolvem tanto dinheiro, tantos patrocinadores, que é absolutamente impossível não saírem. O Estado do Rio, assim como o Espírito Santo, não é proprietário de um patromônio legítimo de todas as 27 unidades da Federação. Tal como o Cristo Redentor, que pertence ao Brasil; ou melhor, à humanidade.

Se a exploração de petróleo se circunscrevesse ao território dos dois estados, podia ser que Cabral tivesse alguma razão. Mas não. Pelo contrário, ultrapassa as fronteiras do Rio e do Espírito Santo, por terra e por mar.

O que Cabral não quer perder é o dinheiro fácil, facílimo. Um dinheiro que irrigou cofres particulares, que nada têm a ver com o interesse público. Os royalties e os recursos do petróleo fizeram de municípios miseráveis e mal administrados municípios ricos e mal administrados. Quanto mais dinheiro, mais roubalheira. São prefeitos nababos, secretários riquíssimos e vereadores com patrimônio de xeque árabe.

Essa turma se acostumou, por décadas, a sugar o erário, fazer de tais recursos - que deveriam reverter em saúde, educação, segurança - poupança particular. Cabral precisa dessa gente para continuar dando as cartas dentro do PMDB e, principalmente, emplacar seu vice-governador na sucessão do Palácio Guanabara.

Se os royalties tivessem sido minimamente investidos em favor da população, o Estado do Rio estaria com boa parte dos seus problemas sociais equacionados. Não é o que se vê, sobretudo quando o assunto é segurança pública. Não se compreende porque, com os cofres cheios, o descalabro grassou.

Mas isto, justiça seja feita, não é uma exclusividade da gestão de Cabral. De Garotinho a Rosinha, passando por Moreira Franco, Marcello Alencar e Leonel Brizola, o dinheiro do petróleo sempre jorrou. São décadas de má aplicação de recursos.

Por isso, não se justifica o choro do governador. Se com tanto dinheiro não conseguiu fazer nada que prestasse, pode ser que com menos recursos seja realmente obrigado a administrar, a mostrar que o cheque pode render.

Será o fim da farra do enriquecimento fácil, sobre o qual muitos se calaram nas últimas décadas. Gente que não tinha coisa alguma agora é dona de fazendas, tem um patrimônio de fazer inveja aos antigos marajás indianos.

Dilma: não vete! Divida o dinheiro por todos os estados, acabe com essa fábrica de corruptos que o Rio de Janeiro se tornou por causa de recursos que irrigaram inúmeros patrimônios. Deixe o Cabral chorar o quanto quiser, de preferência no ombro do Renato Casagrande.

Quem pede é um carioca.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O penúltimo dos moicanos

Sou da geração de profissionais de imprensa que se formou babando as edições do Jornal da Tarde.

Era o estado da arte da criatividade jornalística. A diagramação moderna, excepcional, combinada com títulos críticos, que iam além da notícia, refletia aquilo que significava - e ainda significa - meu conceito para um diário. A interpretação do fato feita com a isenção necessária de mostrá-lo em sua inteireza. Sem eufemismos, máscaras ou recursos linguísticos que sugerem segundos e terceiros entendimentos.


Tudo está dito nas fotos
Para mim, nada havia de mais crítico e de mais agressivo que o JT naquele momento, 1983, quando entrei na velha Faculdade da Cidade para dar meus primeiros passos no jornalismo. Meses antes, me impressionara a primeira página com a foto do menino chorando a desclassificação brasileira na Copa da Espanha. Embaixo, somente a data em que a seleção de Telê Santana foi despachada de volta para casa, derrotada pela Itália por 3 a 2.

Formidável também é a capa com a estupenda foto do comício das Diretas Já, na Praça da Sé. Dizer mais o quê? A imagem era a mensagem completa. Crua, precisa, incisiva.

Sonhava em fazer um jornal assim. Não consegui, mas enquanto estive numa redação, persegui essa ideia diariamente. A de valorizar o material gráfico, a de dizer as coisas com expressões insubstituíveis, a de resumir a manchete numa única (e exata) palavra.

No Rio, ou se lia o Jornalão (como chamávamos O Globo, então representante-mor do conservadorismo nacional, com seu apoio incondicional ao governo militar que jazia no chão, em convulsão) ou o Jotabê, circunspecto, mas com maior liberdade de crítica - e que simbolizava (ainda que não sincera e verdadeiramente) a resistência à censura em favor da liberdade de imprensa no Brasil.

(Vale dizer que no Rio não tinham apenas esses dois veículos: a Última Hora tornou-se pálida sombra daquele diário que modernizara o jornalismo carioca, com Samuel Wainer; a Tribuna da Imprensa simbolizava a República de Ipanema, com Helio Fernandes, Paulo Francis, Marcos Vasconcellos, Flavio Rangel e outros luminares da cultura brasileira; o Pasquim representava o pensamento da Zona Sul e da elite intelectual carioca, com um texto que não frequentava subúrbios e morros; O Dia tinha por lei ser o órgão extra-oficial do Palácio Guanabara, pois ainda pertencia a Chagas Freitas e especializou-se na cobertura ficcional do cotidiano da pobreza carioca; e a Luta Democrática era um não menos divertido sub-O Dia, pura vaidade de Tenório Cavalcanti, o Homem da Capa Preta de Duque de Caxias, que depois o vendeu ao banqueiro de bicho Raul Capitão.)

O JT apaga sua luz não somente por incompetência administrativa ou porque tornou-se anacrônico num mundo que dispensa os vespertinos, atendido que é pelos matutinos - termos, aliás, que ninguém mais utiliza. A internet cravou-lhe os últimos pregos, como vem cravando no jornalismo impresso.

(Os números de circulação são cada vez mais preocupantes. Antes mesmo de pegarem a edição do dia, os madrugadores já sabem das notícias pelo celular ou pelo tablet. Nem é preciso ligá-los. Tampouco passar pela banca de jornais.)

Por que, então, os veículos impressos existem? Porque há uma imensa geração que os consome, tal como a minha. É a mesma gente que compra livros e revistas, acostumada desde o berço com a presença física desses elementos. Fomos todos estimulados na escola, em maior ou em menor grau, à leitura. Os clássicos brasileiros que nos obrigaram a consumir, naquelas abomináveis e paupérrimas edições da Ediouro, são os maiores responsáveis pelo nosso hábito. Aprendemos nessa época que leitura era, acima de tudo, sinônimo de cultura.

Hoje, escola é negócio e descompromisso. Há, sim, o estímulo à leitura, desde que feita nas telas do computador. Textos curtos, sintéticos, pouco analíticos, desestimulantes. Esse, por sinal, é o padrão do noticiário: informações básicas, três parágrafos no máximo.

Quem quiser saber mais, veja no jornal do dia seguinte. Mas dá preguiça. Por que saber mais se já se sabe o mínimo? Para muitos, basta o Jornal Nacional do dia anterior. Rádio é artigo em desuso, sobretudo o do carro.

Ler o JT no meio da tarde/começo da noite ficou impossível. A notícia já chegou pelo celular, sem mesmo que pedíssemos. Jornal dá trabalho, suja a mão, é caro, nos obriga a comprá-lo. Têm o Destak e o Metro, que são de graça e foram entregues no sinal naquela manhã...

Vou mudar minha conclusão: o JT tinha mesmo que baixar a porta de aço. Ninguém o lia, ninguém o entendia, ninguém o admirava mais. Tornou-se um corpo estranho num jornalismo que obriga o editor a fazer contorcionismo para conseguir um título interessante, já que o "lide" parece ser figura maldita nas redações atuais.

Foi melhor assim. O JT tinha uma história bonita demais para conviver com tanta mediocridade.
 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Gelada é para quem tem cotovelo alisado pelo balcão do bar

Poderia dizer que me antecipei a certas coisas, mas pareceria cabotino. Quando ninguém falava em relógios, eu já me interessava por eles. Quando a maioria se empuçava de Skol, eu já procurava as cervejas de qualidade. E é sobre elas que vou (voltar) a falar a partir do próximo parágrafo.

Dias atrás, ouvi o comentarista de vinhos da CBN dizer que cerveja é "bebida de boteco". O que pode parecer um elogio era o mais puro desprezo devotado por alguém que considera que, fora do vinho, não há salvação. Acredita seguramente, convictamente, que o restante é poção para a embriaguez.

O princípio de toda e qualquer bebida é esse mesmo: a embriaguez, a perda do controle. Na Antiguidade, o vinho estava associado às festas com sexo. Baco é o deus romano e bacanal é um sinônimo quase esquecido para transas grupais. O similar nacional é o adjetivo suruba, cuja origem da palavra parece ser indígena.

Os índios, daqui e das Américas, têm vários tipos de beberagens para tirá-los "do sério". As explicações são as conexões divinas e com o desconhecido, o que, voltando na história de Baco, dá no mesmo. Todos saem dos seus estados de consciência e em nome de algo incontrolável passam a se relacionar com o parceiro ou parceira ao lado.

A cerveja tem a mesma origem do vinho. São fermentados, embora de elementos diferentes. Vêm dos mesmos lugares e dos mesmos povos. No século 20, porém, começaram a trilhar caminhos diferentes: um frequentava salões, outra era relegada às tabernas.

Enquanto o vinho era razão de curiosidade, a cerveja era motivo de desprezo. Muitas bebidas a ultrapassaram em interesse e finesse, como o uísque, por exemplo. No Brasil, sempre foi a válvula de escape do Zé Povinho. Enquanto a cachaça era enxergada como o remédio dos mendigos, a cerveja voltava-se para o cidadão de baixa renda.

Cerva, gelada, loura, breja, brahma - mesmo sendo Antarctica. A maior parte daquelas que está em disponibilidade é de má qualidade. Mas descobrimos isso muito tempo depois. Poucos se lembram, mas quem há de atestar se a falecida Brahma Porter era boa? Uma porter fabricada no Brasil. Pois é, e nem foi por uma microcervejaria.

Ou a Hanseática... (também da Brahma e cujo nome se refere diretamente à Alemanha.)

A Caracu ainda é vista somente como um afrodisíaco, cuja combinação com ovo de codorna é infalível quando o assunto é satisfazer o mulherio. Uma sweet stout honesta, talvez a última de uma época em que o pedreiro a tomava para dar uma reforçada na marmita de arroz, feijão, ovo, farinha e carne magra.

"Eurico, vai no armazém do Lopes pegar uma Barriguda pra mim". Era assim que meu avô, chofer de praça e gesseiro, se dirigia diariamente ao meu pai na hora do almoço - geralmente algum item da baixa gastronomia preparado pela minha avó, tal como um arroz com feijão gordo mais costela de vaca e aipim.

Barriguda era uma das cervejas do grupo Black Princess, cuja fábrica ficava na região da Mangueira, no Rio. O nome verdadeiro era Cerveja Sul-Americana, mas, por causa do formato da garrafa, também atendia pelo nome de Barriguda.

A Skol, quando apareceu, pretendia ser uma marca alternativa à Brahma e à Antarctica, que dominavam, respectivamente, os mercados do Rio e de São Paulo. Tanto que não chegou apenas cerveja; trouxe com ela uma linha de refrigerantes, do guaraná à soda limonada. Antes de tudo virar Ambev e depois ImBev, a Skol chegou a ser considerada uma boa cerveja entre as populares.

A Brahma fez de tudo para dominar o mercado de ponta a ponta. Lançou marcas alternativas, como a Malt 90, mais conhecida como Malt Nojenta. E nem era tão nojenta assim. A Brahma vinha perdendo qualidade seguidamente, até que os cariocas começaram a importar a Antarctica. No começo dos 80, conhecedor de cerveja era aquele que só tomava Antarctica.

Em Petrópolis, a Bohemia era uma espécie de segredo bem guardado. Uma Pilsen como uma Pilsen deve ser. Talvez já naquela época não chegasse ao nível de uma Urquell ou uma Búdvar, mas na memória afetiva de todos a Bohemia era uma cerveja especialíssima. Feita com a água da Serra, pura e saborosa. Mas como voltar no tempo e conferir se isso era verdade?

Dias atrás, conversando com meu primo Ricardo Grechi (com um C só, por erro do escrevente do cartório), ele lembrou de um final de ano no qual um velho tanque de roupas feito em concreto, que ficava junto à casa do empregados, esteve repleto até a boca de Bohemias estupidamente geladas. Embora fosse verão, Petrópolis estava friazinha.

Eram vários homens e eu entrando na maioridade. Tomamos muitas cervejas, apreciando a delícia de estar geladíssima e agradabilíssima, combinando com a temperatura amena. Ele jura que aquela era outra cerveja, bem distinta da Bohemia atual. Eu não posso dizer o mesmo. Não apenas porque não me lembro, mas porque também as conversas e os tira-gostos estavam igualmente sensacionais. Na minha memória de pós-adolescente, ficamos uma tarde inteira ali, debaixo de um barracão de madeira, jogando papo fora animadamente.

Ninguém fez degustação de coisa alguma. Como, então, comparar tempos atuais com idos?

Hoje, todos escrevem sobre cerveja, a conhecem como se fosse aquela empregada com que todos "se divertem". Detesto essa intimidade. Quando falam, falam sempre nas mesmas e com um desconhecimento de causa espantoso - mas que aos olhos do leitor comum parecem palavras de catedrático. Jamais provaram uma dunkel, não sabem o que é uma gueuze, acham lambic uma corruptela de alambique.

Poderia deixar eles falarem. Mas é que ler bobagem me irrita. Ainda mais bobagem com jeito de tese de doutorado. Fizessem um mínimo de pesquisa, lessem algo que não seja texto de internet, aprenderiam algo. Só que...

A preguiça é contagiosa.

Talvez quando estiverem cantando em verso e prosa as maravilhas do rum, as diferenças entre os tipos caribenhos, os aromas deixados pelo solo e pelos tipos de cana, escrevam menos besteiras, procurem mais, provem mais.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Imagine isso na Copa

Fora de dúvida que um aeroporto ficar 46 horas interditado por causa do acidente envolvendo um super-cargueiro é uma dessas lambanças monumentais. Nos faz, com justa razão, temer sobre o que vem por aí na Copa do Mundo e na Olimpíada, mesmo com os apelos ufanistas passados por uma propaganda de cerveja. Mas, apesar de todo o transtorno - que me atingiu no Rio, a quilômetros de distância de Campinas e sem que eu nada tivesse a ver com o caso -, as soluções que deram para que problemas semelhantes sejam sanados, se de novo acontecerem, beiram a burrice.

O mais fácil deles: comprar um equipamento de salvatagem, cujo kit básico custa cerca de R$ 2,5 milhões. O único que existe no Brasil, e estava em São Carlos, a quilômetros do acidente, foi usado provavelmente pela primeira vez. Pertence à TAM e foi alugado pela Infraero, para posterior ressarcimento pela Centurion Cargo, arrendatária do MD-11 que interditou a pista de Viracopos.

Um equipamento como este não é simplesmente comprado e colocado dentro de um armário. É necessária sua manutenção e, evidentemente, formação da turma de técnicos que vai operá-lo. Turma, não; turmas - para que haja turnos de revezamento. No mínimo, três delas em permanente disponibilidade, composta de seis a dez homens.

Tudo isso custa dinheiro: conservação, formação de pessoal, reciclagem técnica, instalações, transporte. Uma conta que não sairá barata, sobretudo quando se pesa a relação custo-benefício de se comprar um kit desses.

E quantos existem nos Estados Unidos? Quatro. Na Alemanha e na França? Três. Na Inglaterra? Dois. No Japão? Dois. Como se percebe, a solução mais fácil é a mais cara, não adotada pelas nações que abrigam alguns dos principais aeroportos do mundo.

E o que fazem, então, para que uma pista não fique interditada 46 horas, prejudicando voos de outras praças e companhias aéreas que operam na mesma unidade?

A resposta: têm mais de uma pista! Bestial, ó pá!

A solução é de uma cristalina simplicidade. Viracopos, que é um centro de grande porte, não tem uma pista alternativa. A unidade mais próxima dali é Guarulhos, considerados os tamanhos, para o caso de um desvio de operação.

Não que o projeto de Viracopos não preveja a segunda pista. Existe e está no papel há pelo menos 10 anos. Se começarem a fazê-la amanhã, ficará pronta com muito esforço em 2017.

Entenderam por que Heathrow, Narita, Barajas, Charles de Gaulle, Portela de Sacavén, Doha, JFK, a Guardia e outros grandes aeroportos não ficam interditados? (A não ser por razões climáticas).

O aeroporto de Munique, que ao lado do de Frankfurt forma a dupla de maiores da Alemanha, tem três pistas - duas principais, uma auxiliar. Heathrow outras três, assim como o Charles de Gaulle. Pelo custo de se construí-la, utilizá-la e na eventualidade de um acidente de proporções manter o fluxo circulando, conclui-se que é barato.

Mas o Brasil é o país das soluções improvisadas, que geralmente são as mais caras. Todos concordam que a obtenção de um kit de salvatagem para a retirada de aeronaves de grande porte é preciso. Mas, para que ele pudesse ser utilizado em Viracopos, teve de chegar pela rodovia, aumentando ainda mais o tempo de paralisação do complexo. Claro, como levar por via aérea se a única pista estava interditada?

Quando dizem "imagine isso na Copa", não é um temor sem sentido, pessimismo de brasileiro que tem vergonha do próprio país. Ninguém conhece melhor o Brasil do que nós mesmos, da mesma forma que ninguém sabe melhor como funciona a cabeça das nossas autoridades como nós mesmos.

Há quanto tempo se fala nas tragédias das chuvas, todo começo de ano, na Região Serrana do Rio?

Há quanto tempo se escuta que os barcos que viram no Rio Amazonas e seus afluentes matam centenas de pessoas por causa da superlotação?

Há quanto tempo se ouve dizer que a formação do estudante brasileiro é pífia, a ponto de uma auxiliar de enfermagem injetar café com leite na veia de uma paciente e matá-la?

São alguns exemplos trágicos da imensa e constante falta de prudência.

Agora, imagine isso na Copa!


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Os pecados da profundidade

Sábado foi Hebe Camargo. Domingo, Autran Dourado. Segunda, Eric Hobsbawn.

Aos olhos do grande público, Hebe foi uma perda incomensurável. Não discuto a importância da apresentadora para a TV brasileira, que foi grande. Não assisti jamais seus programas porque, pelo menos para mim, pouco significavam. Aqui, quando digo "jamais", é "jamais" mesmo.

Autran trouxe para o Brasil o pecado da alma mineira
Aos olhos do grande público, Autran e Eric são verdadeiros desconhecidos. Dois Joões Ninguém. Seus obituários nos jornais não lhes farão justiça. Estarão imprensados embaixo e alguma notícia ou de editais do governo. Serão tidos como meros intelectuais, que escreveram livros que pouca gente (ou nem tão pouca assim, sei lá) leu.

Hobsbawm: um dos ícones do pensamento de esquerda
Autran foi importantíssimo para a literatura brasileira. Tinha um texto anguloso, complexo. "Os Sinos da Agonia", seu romance mais conhecido, é difícil de ser entendido. Quem pensa que Minas legou ao Brasil apenas Drummond, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Lúcio Cardoso ou Guimarães Rosa comete um terrível lapso.

Mas Autran era assim mesmo: um caso à parte. Lembro de uma entrevista que vi com ele na qual contou sua experiência com drogas, sobretudo as alucinógenas. Disse não ter gostado, mas confessou ter encontrado um lado bom, o de perder o controle sobre si mesmo. Num mundo e numa cultura em que controle é regra e aspecto fundamental das convivências, achei curiosa a postura. Uma liberdade que talvez poucos tenham a coragem de ter, a de ser levado pelas circunstâncias.


Hebe simbolizava o povão
Era um homem de sólidas convicções esquerdistas. Tinha muito em comum com o historiador inglês Eric Hobsbawn, cujo livro mais conhecido no Brasil, "A Era dos Extremos - O Breve Século XX, 1914-1991", é um ensaio coerente sobre um mundo sem um pensamento político que se contraponha à corrente hegemônica pós-queda da União Soviética e do Muro de Berlim.

Eric não tece loas ao socialismo. Ao contrário, reconhece-lhe os erros de conduta. Mas observa que foi justamente esse confronto de ideias que obrigou o capitalismo a realizar uma severa correção de rota. A agravante, como ressalta, é que os desvios (supostamente para melhor) do capitalismo podem ser abandonados a qualquer momento, já que não existe mais um sistema que possa confrontá-lo.

Quando foi lançado (se minha memória não falha, há mais de uma década), a China ensaiava os primeiros passos dessa revolução silenciosa que protagoniza atualmente. Eric jamais enxergou em Cuba (pela falta de recursos naturais) ou na Coreia do Norte (pela ausência de relação com o restante do mundo) os vetores de substituição dos sistemas políticos por um produto híbrido, tal como Pequim hoje dirige com absoluto sucesso.

Eric também era preciso ao afirmar que as ditaduras são sempre palatáveis desde que a população seja atendida em suas reivindicações. Não bastaria, assim, que o povo tivesse sanadas necessidades básicas, mas que pudesse ter acesso àquilo que as sociedades de consumo oferecem. Ele aponta como sendo exatamente este o caminho do fracasso do socialismo: a população tem casa, alimentação, saúde, educação, mas não tem um sapato decente para calçar, um bom carro para dirigir ou um aparelho de TV do último tipo.

O erro do socialismo foi desprezar o supérfluo, de onde vêm os prazeres da vida. De nada adianta ter tecnologia para criar um caça de guerra que faça curvas em 90º e seu piloto não tenha em casa um forno de microondas. A China custou, mas percebeu isso. E está de pé, como vaticinou Hobsbawn.

Onde entra Hebe Camargo nisso tudo aqui? Não entra, não tem espaço para ela. Não tinha convicções políticas, tampouco se dedicava a análises históricas. Mesmo porque, não era sua intenção. Não era de direita, nem de esquerda, sobretudo não era paga para isso. Quando tentava ensaiar algo do gênero, falava aquilo que o povão compreendia. Nada muito intenso ou profundo.

Daí tanta popularidade.

Que, claro, nem Autran e nem Eric tinham.



sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Ô meu camarada, 70 aninhoshshshs

Tim Maia era um tremendo pilantra. Mas, como vários pilantras, de incontestável talento.

Quem leu a biografia "Vale Tudo", escrita por Nelson Motta, não consegue ficar irritado com Tim. E olha que ele sacaneou muita gente. A partir do momento em que ficou famoso, rico e pobre inúmeras vezes, escrotizou sempre em nome do dinheiro. Dava voltas em quem trabalhava para ele, mas, como músico geralmente não escolhe trabalho (tal como jornalista), poucos se recusavam a fazer parte da sua banda, a Vitória Régia.

Não se pode dizer que Tim seja o resultado direto da soul music. Considero-o mais um filho do rhythm blues e do funk do que, por exemplo, de James Brown ou do Tower of Power. Claro que ele está impregnado de ambos, mas percebo em Tim mais de Sam Cooke, de Marvin Gaye ou de Smokey Robinson. Tem tintas também de Isley Brothers, Earth, Wind & Fire, de Kool and the Gang e de Parliament/Funkadelic.

Seus primeiros discos, mais o Racional e o Tim Maia Disco Club, são muito bons. Estão ali, cabeça a cabeça, com os da Banda Black Rio, o de Dom Salvador e Abolição ou o de Gerson King Combo. É o suburbão do Rio, do Cassino Bangu, do Vasquinho de Morro Agudo.

Do Show dos Bairros, na falecida Rádio Mundial AM, que embalava minhas manhãs pelo radinho de pilha da empregada.

"E agora, música de Maria da Graça..."

"E agora, música do Encantado..."

Onde estão esses bairros agora?

A negrada de black power sendo vista com desconfiança. Lembro do João Saldanha, gaúcho mas com malandragem tipicamente zona-sulista carioca, fazer um comentário pregando que os jogadores de futebol não podiam usar aquele cabelão à Ohio Players. Segundo João, a bola, na hora de ser cabeceada, seria amortecida pela carapinha.

É claro que Paulo César Caju deu de ombros para mais um dos "conceitos" do João. Ele, Dé, Geraldo Assobiador, Rodrigues Neto, Merica, e outros tantos que ostentavam o cabelão em forma de copa de árvore.

Do Leme ao Pontal, Tim mandava ver
Tim era a malandragem da Tijuca, quase Rio Comprido, quase Estácio, quase Praça Onze. Ali pela Haddock Lobo, nas proximidades da Rua do Bispo.

Ali, debaixo do Viaduto Paulo de Frontin, há uma confluência de bairros que nem os CEPs das cartas conseguem exatamente decifrar. Quem pega o carnê do IPTU se irrita: todos querem ser Tijuca, ainda que estejam um pouquinho fora da linha divisória.

A malandragem da Tijuca difere daquela de Copacabana, da de Ipanema, da do Méier, da Zona da Leopoldina. Cada um é malandro à sua forma e todos se respeitam. O tijucano mistura o Morro do Estácio com a Zona do Mangue, que era ali perto.

No então baixo meretrício, assentaram as primeiras famílias estrangeiras, chegaram as primeiras famílias judias. Era uma babel de portugueses, espanhois, italianos, e muitos russos, poloneses, ucranianos, romenos, moldavos, que tinham em comum a fé no Talmud e na Torah. Uma única língua os ligava, apesar de cada um falar a sua.

A Tijuca é cercada de morros. Borel, Casa Branca, Formiga, Salgueiro e, na ponta, São Carlos, hoje Estácio. Tim era um produto da Saens Pena, subindo Conde de Bonfim ou Santo Afonso na direção da Usina. Rua Uruguai, Desembargador Isidro, Praça Afonso Pena. As porradarias contra os "perus de farda" do Colegio Militar. As meninas do Instituto de Educação, o Hospital Gafrée e Guinle (primeiro do país de referência para a Aids), a Praça da Bandeira.

Tim e Erasmo Carlos são os melhores produtos de exportação da Tijuca. Poucos bairros do Rio emplacam dois mestres dessa magnitude entre os 10 mais da MPB moderna. Se o brilho está a uni-los, separa-os o fato de um ter um balanço irresistível e o outro ser um letrista admirável. São da mesma geração, ouviram os mesmos rocks que, com a ida de Tim para os Estados Unidos, se transformaram nos caminhos da música negra que os brancos não conseguiram se apossar.

Fosse vivo, Tim faria 70 anos. Para comemorar a data, no mínimo daria uma declaração tirando onda com isso. Claro, não a levaria a sério porque não é realmente para levar a sério.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Mais que má-fé, burrice

Em alguns dias, a gente não quer falar de coisa séria.

Faço essa pequena introdução para dizer que estava lendo um ótimo artigo de Ricardo Seelig, no blog Collector's Room, sobre a mistura de ignorância com má-fé quando dizem que o Led Zeppelin fez história plagiando artistas menos conhecidos.

Tudo o que ele diz, eu concordo. Ninguém se torna grande assim se for um mero copiador.

A primeira vez que ouvi falar disso foi quando alguém de mal com a vida disse que "Ride in the Sky", do primeiro LP do Lucifer's Friend, foi totalmente plagiada em "Immigrant Song", do Led III. Tudo por causa da entrada das duas músicas. Resolvi ouvir com calma uma e outra para concluir que, apesar da semelhança de alguns acordes, são canções totalmente distintas.

O princípio da aleivosia é justamente esse: atribuir a alguém, cuja importância é incontestável, a esperteza de tirar o pão da boca de outro que não tem a mesma projeção. A alemã Lucifer's Friend começou como uma boa banda de hard rock, mas, provavelmente por causa da falta de brilho dos seus integrantes, individualmente e coletivamente, foi cada vez mais seguindo na direção de um pop cafona e insuportável.

Depois do primeiro bom disco de estreia, que tinha tintas fortes do Uriah Heep e do Deep Purple, tudo o que veio depois tem pouca ou nenhuma importância. Aliás, o único legado do Lucifer's é o cantor John Lawton, que substituiu David Byron no... Uriah Heep!

(Que, curiosamente, a partir daí trilhou caminhada semelhante ao do Lucifer's. Lawton estreou no ótimo Firefly, continuou no razoável Innocent Victim e fechou sua passagem no péssimo Fallen Angel. Depois disso, o Heep se tornou uma banda medíocre, que continua assustando os incautos tal como um cadáver malcheiroso até hoje).

Mas, voltando ao Zeppelin, ninguém tem uma carreira vertiginosa à toa. Já no Led I mostrava a capacidade do quarteto. Ainda naquele ano de 1969, vinha o Led II, mais brilhante que o disco de estreia. E no ano seguinte, no Led III, ninguém mais tinha dúvidas sobre a capacidade de Page, Plant, Jones e Bonham.

Sempre usei este espaço para deixar clara minha paixão pelo Deep Purple. Mas não posso deixar de reconhecer: enquanto o quinteto fazia uma música ultrapassada já em 1968, o Led largava na frente. O Purple precisou de três discos (Shades Of, The Book Of Talyesin, Deep Purple e Concert For Group And Orchestra) para chegar à fórmula que o consagrou - e o colocou tardiamente no mesmo panteão do Zeppelin.

Quando se pensava que o Zep tinha esgotado a capacidade, eis que surge outro trabalho incomparável: Led IV. Houses Of The Holly aparece na sequência e é igualmente fabuloso. Num vácuo talvez de criatividade e provocado também por questões particulares, chega vez de Physical Graffiti, um album duplo somente com sobras (e que sobras!) de canções que tinham sido feitas e não foram incluídas nos discos anteriores.

The Song Remains The Same infelizmente se tornou somente o disco do filme do Zep, uma experiência pretensiosa e confusa, com base numa história sem pé ne cabeça que serve de pano de fundo para os shows do Madison Square Garden. Presence até hoje é subestimado e In Through The Outdoor seria um projeto de uma banda já cansada, mas disposta a algumas novas linguagens. Claro que, se comparado a tudo que havia sido feito até então, não é um bom disco, mas confrontado com muito do que estava sendo realizado por outras bandas, no mesmo período, In Through é, sim, bastante bom.

Nisso tudo, o Zep dependeu apenas das próprias pernas. Page era um guitarrista estupendo, com uma sensibilidade que ia do blues ao rock pesado, passando pelo folk. Plant era sua alma-gêmea e, ao contrário do Purple, ninguém consegue ver um cantor diferente fazendo a outra metade da dupla. Jones tinha a capacidade de materializar, com outros instrumentos, aquilo que Page imaginava. E Bonham... bem, Bonham ainda hoje é considerado referência quando se trata de somar técnica, balanço e peso à bateria.

O Zep era diferenciado. Pode ser até que tenha se inspirado em outros trabalhos - não na seara do rock pesado, mas na do folk britânico executado por bandas como Lindisfarne, Fairport Convention e até mesmo The Chieftains. Não é à toa que Sandy Dennis, cantora do Fairport, faz uma aparição especial em "The Battle of Evermore", uma das grandes canções acústicas do Led IV.

Por causa de toda essa bagagem, dizer que o Zep "chupou" outras bandas e consolidou assim sua trajetória, não é somente desonhecimento e má-fé. É burrice, acima de tudo. O que não faltava ao quarteto era disposição para criar, algo bem mais complexo que meia dúzia de acordes coincidentes.

As acusações de plágio renderam mais aos acusadores do que ao próprio Zep. A turma que aponta o dedo para Page, Plant, Jones e Bonham não faz mais nada a não ser pegar carona na fama alheia.

E convenhamos que, por esse processo, o Zep dá uma mãozinha até para quem é medíocre e obscuro.



Veneno antiignorância

Parecia combinação. E já explico a razão.

Na madrugada de domingo, vi um filme ótimo, "Flor do Deserto", sobre uma somali que se tornou modelo de sucesso internacional. Ela, porém, escondia o segredo de ter sido emasculada, seguindo a brutal tradição de alguns povos africanos, que laceram a genitália feminina em nome de uma suposta instrução sagrada do Corão.

Na manhã do mesmo domingo, vejo na capa da Revista de Domingo, do Globo, uma imensa vagina, negros pelos pubianos à farta. Uma pintura de Courbet, exposta no Louvre para que todos a admirem (mesmo crianças e adolescentes), ilustrando uma excelente matéria sobre definições e limites do erotismo.

Impressionante como nosso conservadorismo e nossos compromissos religiosos, incutidos na cultura e na sociedade, nos leva a uma discussão que há muito deveria estar superada. Pelo menos para mim, claro, que gosto da arte erótica e aprecio a pornografia dentro de certos limites.

(Que limites? Os de que somente homens e mulheres adultos estejam envolvidos na exposição. Tudo que foge disso, abomino, critico e denuncio - sobretudo se há crianças envolvidas.)

A religião nos ensinou que o sexo é impuro e a vagina perigosa. Não foi o catolicismo, apenas. Todas as formas de professar a fé, principalmente entre as seculares, têm algum problema com as mulheres. As diminui, as reprime, as considera vetores da loucura humana. O homem, está nos principais livros sagrados, perde o rumo da "moral" quando se submete aos desejos e à sedução femininos.

É grande a dificuldade de se falar de sexo com adolescentes, principalmente meninas. Dá um apagão e, geralmente, os homens transferem a tarefa para as mães. Que são tão ou mais travadas que os pais! Envergonhamo-nos de tratar de um aspecto natural da nossa existência. Existência não apenas do ponto de vista da reprodução, mas do prazer.

O sexo é uma experiência sensacional, maravilhosa, intensa. O melhor dos esportes. Não se inventou ainda algo capaz de dar tanto bem-estar quanto o contato entre dois corpos.

E temos problemas em falar sobre isso. Ora, que pai não sabe que sua filha terá experiências sexuais? Sabe mas não admite. Estranho isso: por que não admitir? De onde virão os netos que ele tanto sonha? Todos sabemos como funciona o processo.

Deveríamos nos orgulhar da normalidade das nossas vidas e dos nossos corpos, não condená-la. Sociopatia nada tem a ver com sexo, por mais que tentem ligar as duas coisas. O fazem não por ignorância, mas por um conservadorismo pautado por preceitos baseados em pilares religiosos.

O desejo não é impuro, o prazer não é pecaminoso.

Quero consumir e falar sobre erotismo e pornografia. E de tratá-las com a normalidade que merecem.

Afinal, a normalidade é o maior antídoto contra a ignorância.
 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Fadiga de material

Tocou o "barata voa" nas hostes petistas. Pelo jeito, o partido vai abocanhar pouquíssimo na próxima eleição. Claro que isso é um complicador para o futuro: primeiro, porque diminuem as chances de um bom desempenho nas eleições de 2014; segundo, porque fica mais complicado colocar Dilma na parede. Do jeito que as coisas estão se processando, ela chega para a reeleição na interessnate condição de depender pouco do PT. O PT é que vai precisar dela. Muito.

Só que, do lado de tucanos e democratas, as coisas estão igualmente pretas. Em São Paulo, não há garantia alguma de que José Serra vá ao segundo turno com Celso Russomano. E se for, as pesquisas dizem que não ganha.

Não é muito difícil assim entender o que está acontecendo. O eleitor se encheu de uma coisa e de outra. Em Belo Horizonte, está quase reelegendo Márcio Lacerda porque ele nem é PT, tampouco PSDB. Em Recife, Eduardo Campos deve fazer o prefeito, condição que, assim como na capital mineira, representa uma novidade, uma alternativa.

O que o Serra vai dizer do Russomano? Nada, ou melhor, pouco. Mas abriu fogo pesado contra o PT ao conectar Fernando Haddad ao mensalão. Não que ex-ministro da Educação tenha alguma ligação com o episódio, mas seu partido... Isso já é handicap suficiente.

Como ficar contra a opinião pública, que vem batendo palmas para cada relatório do ministro Joaquim Barbosa? Como ficar contra o cidadão que acredita, com as condenações que o Supremo vem decretando, que estamos atravessando o rubicão da sujeira e da impunidade?

Sobretudo, o discurso adotado pelo PT contra o julgamento no STF é rechaçado pelo cidadão. Caso façam uma pesquisa de opinião perguntando se a mais alta corte do País está errando na dose, não tenho dúvidas de que a resposta será um rotundo e sonoro "não".

Ninguém leva a sério a baboseira de acusar os ministros de não julgarem tecnicamente, mas de acordo com aquilo que foi sugerido pelos formadores de opinião - e que, em tese, contaminou as impressões da sociedade. Pior: o eleitor não admite tal teoria conspiratória. Por isso está dizendo não ao PT, como já disse ao PSDB e ao DEM.

A questão é fadiga de material. Chega um momento em que o desgaste de tanto tempo de poder cobra o preço. O processo é bonito exatamente por causa disso: apodreceu, bota outro no lugar. E apesar dos inúmeros erros e vícios do nosso processo eleitoral, considero que seja mais arejado do que nas grandes democracias: nos Estados Unidos, ou é democrata ou é republicano, na Inglaterra ou é conservador ou trabalhista, na França ou é direita ou esquerda. O maniqueísmo reduz as possibilidades.

Vai dar Russomano em São Paulo? Pode ser. Vai ser ruim? Vai trabalhar com os bispos da Universal? Pode ser também. O fato é que ele é uma opção, uma nova opção. Ou aí alguém tem alguma ingenuidade de que, para atingir o patamar que atingiu, não estará carreando votos também de ex-petistas desapontados ou de ex-tucanos decepcionados?

Não é o voto da ignorância, do despreparo, como muitos querem acreditar. Ora, por que desqualificar uma escolha legítima dessa forma? Trata-se do mesmo voto que já botou de Jânio a Erundina. Então, teria mais qualidade se o voto fosse em Haddad ou em Serra?

Isso é preconceito próprio do messianismo que algumas figuras da política invocam para si mesmos. O povo não é esse ente tacanho e desinteressado que muitos acreditam; não é essa massa manipulável que muitos atribuem. Tal classificação é dada por elites intelectuais que, na falta de argumento melhor para qualificar seus candidatos, bota a culpa no alheio.

Depois me contem se Russomano, caso vença as eleições em São Paulo, ganhou apenas na periferia, nas zonas mais modestas.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

De uma ponta a outra (ou minha admiração por Jon Lord)

Ouvi o Purple pela primeira vez ainda bem garoto. E foi uma coisa engraçada: ouvi dois extremos, o In Rock e o Come Taste The Band. O primeiro disco era o auge, o segundo a decadência - e nem por isso ruim.

No Natal daquele ano, acho que 1976, pedi a meus pais um LP de presente. Corri até a hoje falecida Stop, pertinho da praia de Icaraí, trouxe o Made in Japan. Ainda hoje é o disco ao vivo mais espetacular que já escutei. Ainda hoje me arrepio com o solo de Ian Paice em The Mule.

Foi por causa desse solo que quis porque quis aprender a tocar bateria. Paice era meu herói nas baquetas e tambores. Jamais tinha ouvido um pé esquerdo tão rápido no bumbo, mais parecendo que tocava com os dois. A técnica me deixou extasiado. Mas, concordemos, técnica era o que não faltava aos cinco integrantes da banda.

Conversando esses dias com meu irmão Evandro sobre a morte do Jon Lord, disse que ele juntava o melhor dos dois mundos sem parecer chato e pretensioso. Mostrei-lhe que Rick Wakeman fez somente dois bons discos, se você tiver saco para ouvi-los: Journey to the Centre of the Earth e The Six Wives of Henry VIII. O restante é sacal, tristemente classicoso. Ainda que ele possa usar a justificativa de que era filho do pianista Cyrill Wakeman, Rick não tinha o talento do pai. Nem o conhecimento.

Entre Jon e Keith Emerson, também fico com Jon. Sobretudo porque acho Jon mais maduro musicalmente. Pictures at an Exibition, do Emerson, Lake & Palmer, se perde por querer interpretar Mussorgski fora do seu habitat natural. Jon não incorreu nesse erro: quando juntou o rock ao erudito, o fez com composições próprias. Quando chamava Bach, tal como em Windows, era por pura aproximação.

A vantagem de Jon era que sabia conviver com suas limitações. Não buscava fazer barroco ou clássico no rock. Sabia que a mistura era indigesta.

Daí a razão de ser respeitado. Talvez dê mais trabalho montar uma obra do zero do que reinterpretá-la, mas é muito mais aceitável do ponto de vista da crítica. Afinal, não se tem termo de comparação. Pode-se não gostar, achá-la fraca ou incompleta, mas ninguém a colocará lado a lado com o original. Essa é o grande erro dos tecladistas de rock dos anos 70: perdiam de vista suas incapacidades.

Jon era um pouco mais velho. Em 1970, estava com 29 anos, contra uma média de 23/24 de todos os seus contemporâneos - além de Rick e Keith, David Greenslade, Tony Kaye, John-Paul Jones, Tony Banks, Vincent Crane ou John Evan, para ficarmnos apenas nos ingleses. Estava mais perto de Brian Auger do que dos demais. E quatro anos fazem imensa diferença quando o assunto é experiência e maturidade.

Concert for Group and Orchestra foi escrito por Jon com 26/27 anos. Não é uma grande peça e tem pecados sérios na interseção entre erudito e rock. Ainda hoje é confusa. Mas é a prova da capacidade de alguém que era visto como um coadjuvante de luxo, ao contrário dos quatro cavaleiros do Led Zeppelin. Gemini Suite, que veio na sequência, não é tão melhor assim, embora um pouco menos estabanada.

Windows e Sarabande sim, são trabalhos mais intensos, mas bem definidos. Já nessa época, Jon se dedicava a outras experiências além-rock, ao lado de Tony Ashton, uma espécie de alterego para aventuras distantes do Purple. First of Big Bands é um disco que merece ser escutado com altíssima atenção. Nem se diga que era o embrião do Paice, Ashton, Lord. Mas foi esse distanciamento da matriz do Purple que o permitiu criar coisas diferentes. Vejam o trabalho de Ritchie Blackmore: inalterável, embora com muitos momentos brilhantes. Não arriscava coisa alguma.

Derivei do Purple para falar em Lord. Achava que sempre teve reconhecimento abaixo da sua capacidade. Me enganei: vi notícias sobre a morte em todos os grandes jornais brasileiros. O Globo dedicou-lhe belo espaço, assim como o Estadão; a Folha, com seu "Jeito Folha de ser", cobriu satisfatoriamente; e no obitário da Veja deste final de semana está o registro, bem além do trivial. No site da Folha, li sexta-feira crônica do André Barcinski falando do Purple e de Jon.

Para quem não era o solista principal do Purple - tarefa essa entregue a Blackmore -, é o reconhecimento de que Jon era, no mínimo, um músico importante. Tal como Elvin Jones na banda de John Coltrane.


Os rostos de Lord, uma carreira de sucesso e de importância
 Podia ficar aqui escrevendo sobre seu trabalho estupendo em canções como Space Truckin', na versão do Made in Japan; ou seu trabalho no Hammond em Hush, ainda nos primeiros tempos, época do Shades of Deep Purple; ou como foi o alicerce do Whitesnake, pois ao substituir Pete Solley o grupo deu a arrancada que faltava para se consolidar; ou como sustentou o Purple depois da volta, nos anos 80, com Blackmore mais intransigente do que nunca; ou como deu a dignidade que faltava ao Purple quando da entrada de Tommy Bolin; ou como quando passou o bastão a Don Airey, no próprio Purple, pretendendo na reta final da vida fazer algo que estivesse à altura da sua capacidade.

Jon Lord é um heroi da minha juventude e, mesmo, da minha idade adulta. Quem sabe ainda vou poder sentar com meus filhos para mostrar-lhes o que é um grande músico, desses que fazem diferença.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O básico do rock (na minha opinião, claro)


Robertson, Gorham, Downey e Lynnot: "Liza Magrinha"

Zappa e Winter: dois gênios
Mais de um mês depois da última postagem, volto ao meu próprio blog. E volto no Dia do Rock, um negócio picareta, criado em cima do Live Aid original, de quase 30 anos atrás. Isso, porém pouco importa. O que vale mesmo é que já não se ouve mais aquela conversa fiada de que o rock está para morrer e coisas do gênero.

Gostos à parte, considero que para conhecer de rock é preciso ter alguns itens na coleção. CD ou LP, ou ainda fita cassete. O que indico aqui são artistas que, independentemente da decadência de uma carreira de mais de 40 anos, não podem jamais ser desprezados. Muitos deles administram mal seus próprios nomes ou, pior, são obrigados a uma rotina de turnês e lançamentos para se sustentar. Quer dizer, são braçais, pois, do contrário, não pagam as contas no final do mês.

Page, Bonham, Jones e Plant: chumbo grosso

Impossível uma coleção medianamente respeitada sem discos dos Beatles ou dos Stones. Tudo que vem desse período, como Kinks ou Small Faces, é apenas o aprofundamento do processo. (Surgiram quase ao mesmo tempo, mas não tiveram nem o carisma ou competência. Não dá para todos serem geniais.)

Sou um fã do rock pesado. Para mim, rock é isso: uma Stratocaster ou uma Les Paul no volume cinco de um Marshall. O restante é radinho de pilha.
Motorhead: diversão garantida e muito esporro

Se rock não fosse volume alto, Pete Townshend não quebraria guitarras, tampouco Jimi Hendrix teria feito história. Eric Clapton também não teria lançado as fundações do hard rock.

Falei de três, ai em cima, que são essenciais: Townshend e o sensacional The Who, sobretudo a fase após A Quick One; Hendrix já nasceu pesado e sua versão de Hey Joe , no Are You Experienced?,é definitiva; Clapton foi a estrela máxima do Cream, que continuou brilhando intensamente levantando a bandeira do blues elétrico - e foram somente quatro discos (Fresh Cream, Disraeli Gears, Wheels of Fire e Goodbye.

Blackmore, Glover, Paice, Gillan e Lord (sentados): Purple


Rock para mim começa na década de 60. Antes, todo mundo tateava a parede no escuro. Elvis, Little Richard, Bill Haley, Gene Vincent, Carl Perkins, Chuck Berry... Abriram a picada e cada um seguiu ao seu jeito. Uns mais, outros menos rock.

Como já disse, faltava-lhes o Marshall no volume cinco.

E o que ter numa coleção de respeito?

Muita coisa e pode ser que minha memória falhe. Considero esses que vou citar os principais. Quem veio depois, somente seguiu a trilha. Da década de 80 para cá, acho que pouco deve ser registrado.

Gregg e Duanne voando baixo no blues: Allman Brothers

Como já disse, é tudo pessoal. Podem discordar de mim à vontade.

Hard rock - Deep Purple (sempre em primeiro), Led Zeppelin, Black Sabbath, Grand Funk Railroad, Uriah Heep, Foghat, Thin Lizzy, Cream, Hendrix, Who, Gillan, Whitesnake, Rainbow, Gary Moore, Queen, Mountain, Aerosmith, Kiss.


Hard blues - Robin Trower, Rory Gallagher.

Blues elétrico - Johnny Winter (sempre em primeiro), Allman Brothers, Eric Clapton.

Heavy metal - Van Halen, Motorhead, Judas Priest, Iron Maiden, Mettalica, Slayer, Ozzy Osbourne, Black Label Society.

Progressivo - Rush, Pink Floyd, Colosseum e Jethro Tull.

Southern - Lynyrd Skynyrd, ZZ Top.

Psicodélico - Grateful Dead, Jefferson Airplane/Starship.

Mountain: banda para conhecedores


Sem definição - Frank Zappa.

Tem muito mais coisa, claro. Mas o que está aqui é o básico, do básico, do básico. Ou seja, para ninguém se sentir envergonhado.


E seu eu for me lembrando de mais, vou atualizando o post.

O melhor produto de exportação do Canadá: Rush


terça-feira, 29 de maio de 2012

O declínio do rei sol

O que é a atitude do ex-presidente Lula a não ser empáfia e falta de senso de medida? Não, ele não está sendo empurrado pelos efeitos da química que se submete para a cura da doença. Depois de décadas dominando uma agremiação na qual todos lhe rendem vassalagem, e somado aos oito anos em que conviveu com todo tipo de sanguessuga na forma de áulico, seria natural que Lula acreditasse que tudo pode. Deixou o poder com altíssimos índices de popularidade e jamais se conformou com o fato de que se tornou uma criaura das sombras. Aquela força solar que somente o poder confere a quem o veste se perdeu.

Mas Lula vem cometendo erros. O principal: não segurar seus cães numa ofensiva contra a Veja, na CPI do Cachoeira. Ao eleger a revista como inimiga e instigar partidos e aliados a verberar contra relações inexistentes entre a publicação e o bandido goiano, o ex-presidente ultrapassou o limite da prudência.

Até então, o foco da Veja era José Dirceu. São inimigos figadais. Lula jamais tinha sido trazido para o centro do ringue. Claro que muitos dos ataques a Dirceu respingavam nele, mas o dano era periférico. Nos últimos tempos, o ex-presidente teve ainda a seu "favor" ter sido acometido de uma grave moléstia. Por questões estratégicas (afinal, não seria necessário angariar a antipatia geral e parecer injusta e implacável), a Veja recuou.

Lula, porém, voltou à arena. Primeiramente para eleger Fernando Haddad em São Paulo, ponto de honra para ele e para o PT. Em segundo lugar, porque todos no partido parecem demonstrar um desarvoramento geral, uma descoordenação completa. A vida segue, mas esbarra em Dilma, que já mostrou escutar mais sua intuição política do que os conselhos dos petistas que a cercam.

(Quem imaginou que colocaria cangalha na presidente deve estar lamentando.)

O passo seguinte foi atuar para enfraquecer o julgamento do mensalão. Por isso estimulou a CPI do Cachoeira, acreditando que acertaria de morte somente o governador Marconi Perillo. Desse saco de caranguejos vieram agarrados a Delta, Agnelo Queiroz e Sérgio Cabral Filho. Dano colateral previsível, sobretudo quando as gravações trouxeram o diretor para o Centro-Oeste da construtora.

Mas Lula continuou acelerando.

A CPI, formada, se vê hoje diante da desmoralização completa, que pode custar caro não apenas à imagem da instituição, mas aos próprios senadores, deputados e partidos que nela atuam. A primeira manifestação disso pode vir nas eleições municipais, termômetro para 2014. A comissão anda no fio da gilete, vigiada de perto pela imprensa, que a cada dia expõe manobras pusilânimes de figuras sórdidas.

Lula não pode dizer que a CPI era passeio. O próprio Romero Jucá, que apesar da falta de caráter inegavelmente conhece as manhas da política, foi um dos primeiros a avisar. E nem se diga que estava ressentido (embora estivesse) por ter perdido a liderança do governo.

Mas Lula continuou acelerando...

Com a vigilância cerrada da opinião pública e sob risco de desmoralizar-se e espalhar o prejuízo tanto pelos governistas quanto pelos oposicionistas, restava a Lula atuar naquela frente na qual acreditou ser a CPI remédio suficientemente forte contra o julgamento do mensalão. Novamente calçou meião e chuteira para ir a campo.


Com a aquiescência da cúpula do PT, sobretudo de Rui Falcão e José Dirceu, o ex-presidente deu início à série de conversas. Naturalmente que acreditava poder intimidar José Dias Toffoli, Ricardo Lewandowsky e Cármem Lúcia, hoje ministros do Supremo graças ao condão de Lula.

Com Joaquim Barbosa, também guindado ao STF durante seu governo, o ex-presidente já previa uma conversa mais árida e de resultado incalculável. Basta ver nas páginas da Veja as impressões que deu sobre o ministro. Pouco elogiosas; nada que o peso da sua presença não pudesse equilibrar pela via do constrangimento.

Mas Lula continuou acelerando!

Preferiu, então, começar por alguém que é classificado pelo PT como um inimigo a ser vencido: Gilmar Mendes. Figura polêmica e pouco querida, aceitou do amigo comum Nelson Jobim o arranjo do encontro. Que começou com amenidades até que chegou o momento de o ex-presidente dizer o real motivo daquela conversa. Lula, certo de que ainda é uma figura solar, introduziu o assunto do mensalão da pior forma possível, ao apontar que o julgamento, no atual momento, é inadequado.

Afoito, pensava poder jogar para depois da eleição a avaliação do caso.  "Depois da eleição" entenda-se empurrar com a barriga, pois, em 2013, alegaria que é véspera de 2014, ano eleitoral. E assim iria, de justificativa em justificativa.

Piorou tudo quando suspeitou que a ida de Gilmar à Alemanha, com Demóstenes Torres, tivesse ocorrido às expensas de Carlinhos Cachoeira. Lula prometeu ao ministro proteção na CPI. Proteção contra o quê? Sinal de que em algum momento o PT, ao longo do julgamento do mensalão, ia soltar os cachorros contra o ministro, não só para emparedá-lo, mas também para "melar" o trabalho da corte. E consolidar a ideia de que não somente o mensalão foi uma farsa montada "pelas elites" (seja lá o que isso signifique), como o caso está sendo crivado por juízes sem isenção e desonestos.

Quer dizer: Lula trabalha para cobrir o Supremo de vergonha e dúvidas em nome da defesa de uma quadrilha que assaltou sem dó os cofres públicos.

A crise é resultado da onipotência de Lula, não dos efeitos da quimioterapia ou da radioterapia. É fruto da arrogância, da certeza de que esse País é uma terra de leis complacentes e morais flácidas. Como o ex-presidente, que mede os acontecimentos pela própria régua.

Lula merce desprezo pelos lances de torpeza que protagonizou.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O show tem que continuar

Cartaz do show deste sábado, em Birmingham
Vamos falar de música? Vom'bora, mas com uma polemicazinha para animar as coisas. Tal como essa que envolve Bill Ward, baterista original do Black Sabbath, que está fora do disco e dos shows que Tony Iommi, Ozzy Osbourne e Geezer Butler vão fazer - o primeiro é neste sábado, na 02 Academy, em Birmingham, Inglaterra, cidade natal dos quatro.

Ward é um grande baterista? A resposta é: NÃO! É tecnicamente fraco, se comparado a um Ian Paice, um John Bonham, um Ted McKenna e alguns outros contemporâneos seus. Mas assentava-se maravilhosamente bem por causa da sonoridade até então incomum da banda.

Para piorar as coisas, Ward é alcoolatra. Enquanto se tem 20, 30 anos, isso pode parecer engraçado, mas quando se passa dos 40 o corpo começa a cobrar o preço pela vida de excessos. Claro que ele não era apenas beberrão. Inclua aí cocaína e maconha, e você terá o coquetel completo. Ozzy aguentou bem? Mais ou menos. Prova é que ele hoje parece completamente idiotizado ao falar.

(Vi o show dele em Brasília, ano passado. Para um cara que passou o que ele diz ter passado, tem uma forma física invejável. Mas, algumas vezes - talvez pelo calor que fazia no Nilson Nelson -, encostou no praticável onde estava montada a bateria e, fingindo brincar com a galera, descansou alguns segundos. Também li sua biografia. Impressionante a resistência que tem a substâncias tóxicas.)

Quem ouviu e viu o DVD de Reunion, lançado há alguns anos, percebe que Ward está em má forma. Se na juventude não era grande coisa, imagine com o peso da idade nas costas. Dos quatro, apesar de não se submeter a artifícios estéticos (como o cabelo retintamente preto dos outros três), é o que tem a aparência de já ter ultrapassado os 70 anos.

Não consigo destacar um disco em que posso dizer que Bill arrebentou. Para mim, há faixas em que ele se sai muito bem e outras nas quais faz o básico. Era o que a música pedia? Sim e não. O material do Sabbath vive sendo executado por outras bandas e o que faz diferença é justamente o trabalho da bateria. Ouçam, por exemplo, Speak of the Devil, do Ozzy. Certo é que um baterista fenomenal como Tommy Aldridge faz chover, mas outros caras muito bons já passaram pelas bandas dos quatro - pequena lista: Randy Castillo, Deen Castronovo, Bobby Rondinelli, Michael Bordin, Carmine Appice, Jim Copley, Eric Singer, Vinny Appice etc. - e conseguiam melhorar o que já era bom.

Bill: envelhecido e prejudicado pelos anos de excesso
Assim, quando Bill entrava em cena, a impressão que sempre tive era de que não apenas não conseguia seguir o pique dos demais, como ficava evidente que era o músico menos talentoso. Uma limitação que, ironicamente, não se manifesta no excelente When the Bough Breaks, um dos álbuns-solo de Ward, que sabiamente entrega a bateria para se dedicar ao vocal. E se sai muitíssimo bem, num disco sombrio, uma espécie de heavy Pink Floyd.

Então, se eu, que estou de longe, tenho essa impressão, era natural que os três percebessem a mesma coisa. No tiroteio entre Bill e o trio restante, ele se disse ofendido várias vezes pelas decisões tomadas por Tony, Geezer e Ozzy. A mais recente é a de que tocaria somente poucas músicas em algumas e escolhidas apresentações. Esse prêmio de consolação é próprio da camaradagem. Algo do tipo: "O cara não tem mais condições, mas, como é nosso irmão, vamos arranjar um jeito de não sacaneá-lo". Foi, creio, o que fizeram com Ward.

Quem vai levar a bateria (parece) é Tommy Clufetos, que vinha tocando com Ozzy. Por que não Vinny Appice? Pela razão óbvia de que ele é tão associado à imagem de Ronnie James Dio que, se entrasse, o que se veria nos palcos seria um híbrido do Black Sabbath com o Heaven & Hell. E como esses comebacks têm um quê de ridículo, a emenda sairia pior que o soneto.

Clufetos, porém, não vai entrar na banda, tal como Geoff Nichols jamais entrou desde que Tony arrastou o cadáver do Sabbath após as saídas de Ozzy e Dio - foi oficializado somente na época do Seventh Star; depois, voltou para o backstage. Situação ridícula a do músico que toca das coxias. Todos ouvem aquela cama dos teclados, mas não sabem de onde vem.

Assim, o Sabbath redivivo será somente 3/4 da banda original com mais um convidado. Tal como Jason Bonham tocou com o que sobrou do Led Zeppelin, há poucos anos.

Quanto a Bill, quisera que sua saúde o ajudasse a tocar com os demais ou sua voz estivesse em condições para a retomada da carreira-solo onde parou, na década de 90. Não o conheço pessoalmente, mas tudo que li sobre ele o coloca na lista dos caras afáveis, bons de convivência. Basta ver que, quando Tony e Geezer estava rompidos com Ozzy por causa da saída da banda, Ward foi o único que manteve contato com o vocalista. Tanto que no documentário Don't Blame Me, Bill é quem aparece prestando depoimento sobre o cantor e falando do relacionamento fraternal entre eles.

É pena ver que os herois da gente também têm seus maus dias e péssimos finais. Gostaria de ver Ward, apesar de pensar o que penso dele, em plena forma, levando o material clássico do Sabbath. Gostaria que não envelhecessem. Gostaria que os anos de abuso não pesassem sobre o corpo. Mas não dá.

The show must go on, diz o jargão. Time is money, diz outro. E Bill, pelo tanto de tempo que passou na vida artística, os conhece muito bem.
O baterista com um dos seus adereços prediletos - o copo

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Vozes, mãos, braços

Tomei um tapa na cara sem mesmo saber de onde viera. Ainda aturdido com a queda, percebi duas coisas: que a cabeça sangrava e que algo com um forte cheiro de pólvora me pressionava a fronte. A mão, grossa e cheia de calos, fez um exercício que contraria a física ao tentar puxar-me o corpo somente pela cabeça. A dor foi insuportável.

O olho esquerdo mal abria. O sangue, grosso como melaço, o cobria. O pouco que via, pois o óculos voara longe e se perdera, era um gradil. Um vulto amarronzado abria-me uma portinhola, por onde alguém berrava aos meus ouvidos que deveria passar. O arremate foi um violento empurrão no meio das costas por um pé. Certamente a camisa guardara a marca do sapato.

O cheiro dentro era insuportável. Não se via nada, a  não ser pequenas nesgas de luz que vinham das frestas na lateral daquele cofre. O ar era impossível respirar. Misturava suor com sangue, fezes e urina, e subia pela garganta, deixando um gosto ruim na boca. Comecei a socar a lataria. O cofre sacolejava. Foi quando vi que havia mais alguém naquela escuridão. Mas não falava, não reagia.

Perdi a noção do tempo. Passei a mão no pulso e nem senti que o relógio me fora retirado. Presente do pai, de formatura. Onde estava? Era em ouro rosa. O velho morrera meses antes. O cigarro o matou. Não tive como ir ao velório ou ao sepultamento. Chorei durante toda a noite no apartamento com os quatro colegas de faculdade. Alguém, no meio daquela agonia, sugeriu comprar uma garrafa de Royal Label para que enchesse a cara e dormisse. A amiga, porém, foi contra. Levou-me para o quarto e tentou me acalmar com carícias. No meio da noite, conseguimos.

Ouvi o estampido e me assustei. É a portinhola se abrindo. A claridade invade o cofre e me cega. Duas mãos, não se sabe se as mesmas, me puxam para fora com brutalidade. No arranco, piso sobre a outra pessoa, que apenas geme. Enfio a cabeça no alto da portinhola. Outra dor lancinante.

"Olha a cabeça, arrombado!", grita um dos braços.

"E o outro?", pergunta uma segunda voz.

"Deixa essa porra aí. Acho que tá morta".

Ouvi dos mais velhos que era preferível ser morto a cair. A casa tinha caído. Uma mão me guia pelo ombro e vai indicando o caminho. Tinha sido quem? Alguém de dentro? A mulher do médico que passava os dias em casa? O entregador da mercearia, que sempre que ia entregar compras ficava pescoçando para dentro do apartamento? O faxineiro que trabalhava vestido com a camisa do Botafogo?

Alguém deu o serviço. Os mais velhos diziam sempre que, se pudessem, faziam como os nazistas capturados: morderiam cápsulas de cianureto. Onde arranjar capsulas de cianureto? A ideia não era má.

"Olha o degrau. Outro..." Essa já era uma terceira voz. Ou seria uma quarta?

A mão continua no ombro, amigável. A luz, de repente, mudou. Passou para algo lusco-fusco, nem claro, nem escuro. Havia janelas (ou portas?) ao longe. Dava para ver pela claridade que lhes assumia o formato.

"Para. Senta aí." A mão me empurrou para baixo, fazendo-me abaixar. Apalpei a parede e percebi uma estutura de madeira. Um banco. A voz tomou-me uma das mãos. Algemou-me a um pedaço da lateral de onde sentara.

"Espera aí", ordenou a voz. E saiu. Ora, como se fosse possível fugir. O banco parecia de madeira maciça, sólido, pesado. Era liso e plano. Senti a textura do assento com a mão esquerda, que ficara livre. Era polido, macio, aveludado.

Alguém retorna. Não era a mesma voz.

"Levante-se!"

Como?

"Jair, tira essa porra dessa algema".

"Fica quieto". Era a mesma voz que me conduzira até ali. Passei a mão no pulso, que ficara marcado. A algema estava arrochada demais. A região estava meio dormente pela falta de circulação sanguínea.

"Entra". Era a segunda voz.

"Senta!"

Onde?

"Não tá vendo a cadeira, porra?", exasperou-se a segunda voz. "Você é cego?"

Sou, de certa forma. Tenho miopia acentuada. Na bordoada, na rua, meu óculos voou longe. Não estou enxergando coisa alguma.

"Melhor assim. Aqui você não precisa ver nada. Aqui o importante é falar".

Sentei-me na cadeira. Uma das pernas estava bamba. Tive medo de cair. Procurei fazer o menos possível de movimento para não correr o risco. Coloquei as mãos sobre as coxas, femininamente. Era uma forma de me equilibrar e não tomar um tombo.

Enxergava (ou melhor, via apenas vultos) somente com o olho direito. Não notei, mas ao lado, mais ao fundo, havia alguém. A voz que me conduzira cruzou a mesa quadrada que tinha em frente e sentou-se. A cadeira rangeu dolorosamente. O segundo vulto tinha uma respiração pesada. A voz abriu o que pareceu uma pasta, dessas de arquivo. Tirou duas folhas, que farfalharam.

Quando começou a ler, não havia dúvidas. Estava tudo ali. Nome, sobrenome, codinome, nome de amigos, codinome de amigos, funções, datas, horários, locais, fatos. Gelei. Conhecia todos, sabia de tudo, vivera ou ouvira boa parte daquilo que me era relatado.

"Isso aqui é um tribunal?" perguntei.

A pessoa que estava atrás levantou-se. Parecia ser enorme. Deu-me uma cutelada no trapézio. A dor subiu à cabeça e desceu. Entortei-me, passei a mão esquerda sobre o ombro tentando fazer sarar. Bobagem. A face, contrita, apertava os olhos que nada enxergavam. Tive vontade de chorar.

"Fale somente quando for pedido", disse a voz do outro lado da mesa. "Senão, a diversão vai começar aqui mesmo".

Falar o quê?

"O senhor confirma....", e começou. Não confirmo nada, não sei do que estão falando, não conheço, não vi, não sei de nada. Vocês estão cometendo um erro. Esse não sou eu.

"Ah, não?"

Nova cutelada. Dessa vez não ouvi o sujeito de trás se levantar. A negativa continuou. Perdi os sentidos. Difícil saber se foi um "telefone" ou um tapa no pé do ouvido. A cabeça zumbia. Acho que caí no chão. Mãos desconhecidas me levantaram. Um cheiro insuportável me invadiu o nariz.

Amônia.

Uma mão desconhecida abriu-me a pupila, jogando um facho de luz. Fez o mesmo com o olho esquerdo, inchado. Nessa hora doeu. Tive uma reação com a cabeça, querendo fugir da mão.

"Pode prosseguir. Mas acho que é fraco".

"Vai aguentar a operação?"

"Não sei. Vamos tentar".

A mesma ladainha recomeçou. Você é, você viu, você conhece, você estava... Não, jamais, em tempo algum.

"Se não falar por bem, vai por mal", disse a voz que vinha de trás, bem perto do ouvido. Emanava um hálito estranho... Café! Café naquilo ali?  Imaginei o cheiro do grão recém-moído, como aquele que comprava no armazém do Galdino. Um quilo dava para a semana. Era um café forte, gostoso. Galdino era um sujeito honesto. Nunca errava no peso. A balança estava sempre regulada. O cheiro do café impregnava a lojinha. Brincava com o gato que se deitava sobre a resma de papel para embrulho. Chiquinho.

"Se não falar por bem...", repetiu a voz em frente.

Falar o quê? Não tinha jeito de dedo-duro. Os mais velhos me ensinaram a fazer pouco caso de quem caía e abria a boca. Lembrava sempre daquela cena em O Assalto ao Trem Pagador, quando o primo de Tião Medonho é usado como isca pela polícia para pegá-lo. Quem era mesmo aquele ator, que fazia o primo? Não lembrava o nome. Mas, engraçado, achava que ele tinha cara de dedo-duro.

Dizia-se que Virgílio, quando caiu, deu todo o serviço. Difícil provar, mas tinha tudo a ver. Logo em seguida um monte de gente também caiu. Dora, Macedo, Guima, Guilherme, Tonico, Chaleira, Ronaldo, Ângelo... Dizia-se que Guima e Chaleira tinham morrido. Ninguém voltou a ser visto.

"Não tenho nada a dizer. Não sei porra nenhuma".

Pegaram-me pelos braços. Eram duas pessoas.

"Leva esse merda. Opera ele para ele ficar fino".

"Vai dar uma de machão, filho da puta? Vamos te comer o cu agora". Essa voz até então não se apresentara. Não, não era um prazer conhecê-la.

"Ih, mais um?", perguntou alguém que passou pelo trio, naquele caminho cinzento.

"Vamos tirar o cabaço dele", respondeu a mesma voz que não se apresentara. O outro, que segurava o braço esquerdo, não se manifestara.

À medida que iam avançando, a luz natural desaparecia. Um lance de escada, dois, três. Um deles tropeça e quase cai:

"Porra..."

Lâmpadas incandescentes no alto, amarelas, fracas. 15 watts, 20 se tanto. Fraquinhas. O corredor era longo. Uma porta, parecia de metal.

"Abre doutor, abre..."

"Mais um?"

"Mais um. Hemorróidas. Vai operar?"

"Trouxeram a papelada?"

"O Jair está trazendo".

"Tem que ser rápido. Hoje tenho compromisso."

"Nós também. Quero ficar nessa porra até tarde, não". Era a voz que segurou o braço direito.

"Olha aí, chegou. Tira a roupa dele?"

"Pra quê, vai com roupa mesmo. O Tavares está lá em cima? Se estiver, ô Jair, diz para ele descer. Não quero que esse filho da puta desmaie no começo da operação".

"É, ele é meio fraco. Lá em cima já deu uma apagada..."

"Amarra ele. Fuma?"

Se eu fumava? Durante certo tempo... As mesmas perguntas.

"Vou começar de leve..." Abriu as pálpebras e enfiou o toco do cigarro.

Um tapa, dois. Senti que faltava algo dentro da boca. Foi depois de um soco. Baba de sangue escorria pelo peito.

"Levanta esse puto".

Afogamento. Uma, duas, três... sete, oito... A água fedia. Dei com o queixo na borda do tonel e mordi a língua. Vozes berravam no meu ouvido. Eram todas iguais. Estava surdo. Lá longe, ouvi o doutor dizer.

"Hoje não vai, mas amanhã ele canta. Leva. Tá dando minha hora".

Murmúrios de concordância.

Mãos me pegam pelo sovaco. Não me aguentava em pé. Senti um cheiro forte de fezes. Eu me cagara. Percebi ao sentir algo quente escorrendo pelas minhas pernas.

"Puta... Se cagou!", disse um.

"Que se foda. Vai dormir em cima da merda".

Eu tinha nojo de dedos-duros. Eram como o primo do Tião Medonho, no filme.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O resultado do ridículo

Fui um dos primeiros jornalistas a entrevistar Fernando Collor depois que saiu de longo exílio imposto pela Justiça, por conta das traficâncias do esquema PC Farias, que o derrubou. Fui despido de simpatias (que não tenho) ou antipatias (que são imensas) por este personagem da pobre política nacional. Com Jorge Eduardo Antunes e João Carlos Rodrigues, mais Ricardo Marques pilotando a câmera, publiquei duas páginas no então respeitável e legível Jornal de Brasília. No domingo, em espaço e edição nobres.

Lembro especialmente de uma pergunta feita durante a entrevista: quem é esse novo Collor? O hoje senador pelo PTB de Alagoas filosofou. Disse ter aprendido e buscou dar outras provas de que melhorara graças a doses maciças de humildade, estudo e observação. E voltava à cena se somando à base do seu ex-figadal inimigo, o então presidente Lula.

Sobre isso, aliás, Collor disse não haver problemas. Quer dizer: mudara realmente. Avançara.

Isso, evidentemente, poderiam pensar os ingênuos.

Não mudou coisa alguma. E a prova disso está no noticiário. Gosta da imprensa quando lhe é a favor, tal como o episódio que descrevi. Quando é contra, move céus e terras. Sorte que os veículos sabem de quem se trata.

Ontem, fez discurso no Senado exigindo que a Veja e Policarpo Júnior se explicassem. Mais uma vez, desfiou um rol de leviandades, sobretudo quando afirmou que entre a revista e Carlinhos Cachoeira há uma relação umbilical. Não há. O que há é o ódio de Collor pela Veja, responsável pelo começo de sua derrocada ao abrir páginas para Pedro Collor.

E a publicação, no seu mais recente número, fez questão de mostrar que o hoje senador caiu porque contra ele havia uma fartura de provas de conivência com o notório PC Farias. A Veja mostrou que, se deu o primeiro tiro, o restante da imprensa tratou de retalhar o corpo presidencial.

Compreensível que Collor não perdoe a revista. Mas não é natural.

Na época em que começou a descer a ladeira, eu estava na Tribuna da Imprensa. Era editor de Política, embora isso, infelizmente, não queira dizer muita coisa. O jornal era Helio Fernandes, que não aceitava sugestões de ninguém. O chefe da Redação, um certo Paulo Branco, que assumia a forma do vaso que o continha - homem de convicções elásticas e amplas. Abaixo dele, Roberto Assaf - jornalista sério, que, como eu, sofria ao ver o caminho antinatural seguido pela publicação.

A Tribuna remava contra a maré. Helio insistia em ver um golpe em marcha para tirar do poder o primeiro presidente eleito depois da ditadura. Sua compreensão dos fatos encontrava eco somente em Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio.

Mas embora enxergassem as coisas da mesma forma, separava-os o âmago da questão: Brizola acusava o Globo, a Abril, a Folha e o Estadão de se unirem, turbinados pela força da Rede Globo, e trabalharem para cassar Collor e dar o poder a Itamar Franco, o vice - a fim de torná-lo um fantoche; Helio compreendia quase da mesma forma, porém ombreara-se a Collor por estar sendo regiamente remunerado. Foi um período próspero para a Tribuna, que recebeu enxurradas de publicidade do governo federal, mesmo sem ter relevância alguma para tanto.

Helio várias vezes veio a Brasília. Em inúmeros fins de tarde o vi adentrar a redação, apressado, terno azul marinho bem cortado, na direção da sala de Paulo Branco. O resultado, eu e Assaf já podíamos prever: uma manchete delirante. O preto viraria branco (sem trocadilho), num imenso artigo que Helio mandava publicar na primeira página. Geralmente, uma versão enlouquecida dos fatos, uma interpretação muito própria das coisas.

Nada daquilo, claro, era pelo amor à manutenção do sistema democrático.

Lembro de uma série de entrevistas, que saía sempre às segundas, como forma de dar alguma credibilidade a um governo sem credibilidade alguma como o de Collor. Figuras vergonhosas passearam pela então nobre página 5, como Nei Maranhão e outros que participavam da tropa de choque. As entrevistas vinham prontas, mas, de vez em quando, tínhamos arroubos de independência. E pautávamos alguém para ser ouvido.

Foi quando dei a ideia de saber o que pensava o historiador Nélson Werneck Sodré. Homem de sólidas convicções esquerdistas, autor do clássico A História da Imprensa no Brasil, deu uma entrevista devastadora. Não deixou nada que se salvasse sobre Collor.

Quando vi, meus olhos se arregalaram. Levei a Assaf e, juntos, levamos a Paulo Branco. A resposta veio seca, ríspida, bem ao estilo:

"Corta essa merda, porra!"

Ou seja, censura. Falar em censura na redação da Tribuna, que Helio fazia questão de alardear que jamais se curvara aos mandos do generalato de anos antes... Era a piada pronta. E de péssimo gosto.

O que saiu foi um arremedo de entrevista. Fiz uma imensa ginástica para publicar "aquilo", com pontos apenas leves da crítica devastadora que fazia ao governo Collor. Me revoltou e revoltou ao repórter que a fizera. Que na segunda-feira, quando cheguei na redação, me disse:

"Fabio, vou avisar ao Nélson Werneck. Não quero ter nada com isso!"

"Beleza, avise sim. Nem eu quero ter coisa alguma."

Ele ligou para o historiador, que, claro, ficou indignado. Não vira a entrevista, mas como tinha o telefone de Helio, procurou-o. E até onde sei, passou-lhe uma descompostura.

Na sequência, dispara sala afora o sempre gentil e afável Paulo Branco.

"Fabio, quem foi o filho da puta que ligou para o Nélson? Ele encheu os ouvidos do Helio, que está puto e me deu um esporro! Vamos ter de publicar a porra da entrevista de novo, com as partes que ficaram fora! Puta que pariu! Caralho!"

Toda essa peculiar linguagem ecoou pela grande, mas pouco povoada, redação da Tribuna.

O repórter quis reponder ao "filho da puta" como fora classificado, mas consegui que ficasse quieto. O importante era que a entrevista sairia de novo.

Minutos depois, volta Paulo Branco:

"Fabio, põe só o que ficou de fora dessa porra! E mete um título assim: 'O pensamento de Nélson Werneck Sodré'."

Tentei ponderar até com alguma veemência, mas...

"Você gosta de trabalhar aqui? Então põe essa merda como mandei!"

Era o ridículo do ridículo. Um jornalismo ridículo, protagonizado por gente ridícula, que ridicularizava um jornal por causa de um presidente ridículo.

É esse, em suma, o senador e ex-presidente que pretende colocar a faca no peito da Veja.

Ridículo.